*N.T.: Chutzpah é um termo tirado do idioma iídiche amplamente utilizada nos Estados Unidos para definir um tipo de comportamento ultrajante, como, por exemplo, quando uma pessoa que matou ambos os pais pede clemência ao tribunal alegando que é órfão.
Por Laurie Kazan-Allen (IBAS), na ABREA
Em 17 de janeiro de 2024, Fernanda Giannasi – líder da campanha de proibição do amianto na América Latina e cofundadora do Grupo Brasileiro de Vítimas do Amianto, a ABREA, postou um comentário no LinKedIn. Li uma vez e então, perplexa, li novamente. Depois de estudá-lo forensemente, comecei a escrever o artigo abaixo. Quando terminei, enviei para Fernanda para garantir que havia entendido corretamente os fatos por ela denunciados e ela confirmou que sim, dizendo:
“Os brasileiros são pessoas muito criativas em diversos campos como na música, arquitetura, artes visuais e plásticas. Infelizmente, esta mesma habilidade, quando deturpada por estrategistas jurídicos, pode ser utilizada de forma nefasta, como vimos aqui. Funcionários, membros e apoiadores da ABREA estão indignados com esse abuso de nosso sistema jurídico e com o desprezo com que a Eternit S.A. parece ter por suas vítimas.”
O fato a que Fernanda se refere no parágrafo acima é uma proposta apresentada ao tribunal que analisa o plano de saída da recuperação judicial da Eternit S.A. – o mais antigo e maior conglomerado do amianto do Brasil e dono de uma subsidiária que ainda produz amianto, a SAMA de Minaçu, em contravenção a uma decisão do Supremo Tribunal Federal do Brasil (STF) de 2017. A proposta se refere à indenização das vítimas de suas fábricas de cimento-amianto de Osasco (estado de São Paulo), Rio de Janeiro (estado do Rio de Janeiro), Simões Filho (estado da Bahia), Colombo (estado do Paraná), Goiânia e Anápolis (Goiás) Estado) não com dinheiro, mas com ações da empresa (em Setti, R. Eternit propõe indenizar vítima do amianto com… ações da Eternit na Bolsa. 16 de janeiro de 2024. (https://leiaisso.net/ve5q9/)
De acordo com a proposta da empresa, os atuais e futuros demandantes que tiverem decisões judiciais favoráveis, por serem vítimas de doenças relacionadas ao amianto, com indenizações superiores a R$ 250 mil – que, provavelmente, serão a maioria dos reclamantes representados pelos advogados da ABREA – terão apenas uma opção realista: receber o R$ 250 mil em 90 dias, sendo o restante da remuneração pago em ações da empresa Eternit negociadas na Bolsa de Valores de São Paulo (BOVESPA) no prazo de um ano. Alternativamente, os requerentes seriam forçados a esperar oito anos e meio para receber o valor em dinheiro da indenização concedida pelos tribunais do trabalho. Em outras palavras, de agora em diante, as vítimas do amianto da Eternit – a maioria das quais vive com sobrevida reduzida – não terão alternativa razoável a não ser se tornarem acionistas da empresa cuja negligência, prevaricação e irresponsabilidade social corporativa roubaram-lhes a saúde e, infelizmente, em muitos casos, está fazendo com que morram prematuramente devido aos cânceres e doenças relacionadas ao amianto.
Em mais de 30 anos em que estive envolvida na luta por justiça em matéria relacionada ao amianto, pensei ter testemunhado todo o tipo de estratégias de desvio, encobrimento e negação por parte dos réus do amianto e de seus advogados. O sumiço de documentos, testemunhas faltando com a verdade e os processos adiados interminavelmente eram táticas familiares para mim e para outros que lutam pelos direitos legais das vítimas.
Porém, em todo esse tempo eu não tinha visto nada tão vil como o que está sendo proposto no Brasil. Vincular a sobrevivência financeira de um reclamante sofredor do amianto e da sua família ao bem-estar fiscal da empresa assassina é um conceito tão flagrante que quase nos deixa sem fôlego. Longe de acabar com o tormento dos feridos, o pagamento de indenização em ações da Eternit acrescenta mais uma camada de pressão ao fardo intolerável que já está sendo suportado por essas famílias; poucas das quais têm qualquer experiência ou conhecimento de lidar com o mercado de ações. Temos esperança que as autoridades no Brasil reprimam esta e outras práticas danosas destinadas a negar às vítimas do amianto os seus direitos legais, civis e humanos.
Reino Unido, 18 de janeiro de 2024.
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