sábado, 15 de outubro de 2011

QUEM É O "MÉDICO SUÍÇO" QUE AVALIZA O AMIANTO BRASILEIRO COMO INOFENSIVO

Em http://www.viomundo.com.br/denuncias/perito-suico-em-amianto-foi-pago-pela-industria-brasileira-do-amianto.html




28 de maio de 2010 às 2:44

Perito “suiço” em amianto foi pago pela indústria brasileira do amianto

Publicada originalmente em 28 de setembro de 2008



por Conceição Lemes, do site antigo



Guarde este nome: David Bernstein. E este termo: biopersistência. A partir de agora, “ouvirá” falar bastante de ambos. No centro da discussão, o amianto branco, ou crisotila, utilizado no Brasil. Com a palavra, primeiro, as instituições defensoras do mineral no País. Seus sites expressam suas posições.



O da Comissão Nacional dos Trabalhadores do Amianto (CNTA) divulga: “A menor taxa de biopersistência: ‘Estudos recentes confirmam que o crisotila brasileiro é menos nocivo á saúde humana no mundo’. A declaração é do médico David M. Bernstein em abordagem sobre os efeitos do mineral para a saúde (sic)”.



“‘Hoje, diferente do que ocorreu no passado, não há nenhum risco para os trabalhadores, que aderiram ao uso controlado e responsável, assim como para a população que utiliza produtos que contém o crisotila e o mundo precisa saber disso (sic)’”, destaca Adilson Santana, vice-presidente da CNTA, ao comentar, no boletim da entidade, a Conferência Internacional do Amianto, realizada na cidade do México, em 2007. “A Conferência foi marcada por diversas palestras, que deram um panorama geral sobre o amianto crisotila e a defesa dos recursos naturais, como o do médico e pesquisador David Bernstein (sic) …”



O Instituto Brasileiro do Crisotila (IBC) propaga: “Em temperaturas acima de 800ºC o amianto crisotila sofre decomposição térmica, transformando-se em forsterita (…); a forsterita não é fibrosa, sendo inócua à saúde humana. Estudos de biopersistência evidenciam o fato do produto ter baixo potencial de toxicidade (…) Esses dados foram confirmados pelo renomado médico toxicologista suíço, Dr. David Bernstein (sic).” O objetivo principal do IBC é fazer lobby a favor dos interesses da indústria.



O site do Grupo Eternit, o maior do setor de amianto no Brasil, expõe: “Biopersistência significa o tempo de permanência das fibras no pulmão antes de serem eliminadas. Enquanto as do amianto crisotila permanecem no máximo dois dias e meio no pulmão, as do anfibólio ficam mais de um ano. Os trabalhadores das indústrias que seguem as regras do uso controlado estão totalmente seguros”.



“O discurso sindical é xerox do discurso empresarial”, considera Eliezer João de Souza, presidente da Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (Abrea). A engenheira de segurança do trabalho Fernanda Giannasi, auditora fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) em São Paulo e coordenadora da Rede Virtual-Cidadã pelo Banimento do Amianto para a América Latina, põe o dedo na ferida: “CNTA =IBC=Eternit = David Bernstein + biopersistência”.



Bernstein defende que o tempo que a fibra de amianto persiste no pulmão é que indica o seu grau de nocividade. É o que ele chama de biopersistência. Em 1999, ao participar de uma audiência pública sobre o tema na Câmara dos Deputados, em Brasília, foi saudado como “cientista suíço, autoridade máxima e de reconhecimento internacional em estudos de fibras e partículas”.



Na ocasião, apresentou-se como pesquisador independente e disse, entre outras coisas, que: 1) a crisotila da mina de Cana Brava, em Minaçu, norte do Estado de Goiás, fica pouco tempo no pulmão, o que eliminaria o risco de ser cancerígena; 2) o amianto brasileiro seria seguro e não faria mal à saúde; 3) suas pesquisas sobre biopersistência, feitas com ratos de laboratório, teriam orientado a Comissão Européia na classificação de fibras. Fora, inclusive, convidado a participar dela.



INDÚSTRIA BRASILEIRA DO AMIANTO FINANCIOU BERNSTEIN



Faltou com verdade aos deputados brasileiros. Físico de formação e estadunidense de nascimento, Bernstein acabou se dedicando à toxicologia e foi morar na Suíça.



Recentemente, sua máscara de neutralidade e independência lhe foi arrancada em plena Corte do Distrito de Ellis County, Texas, Estados Unidos. A audiência era para tratar do processo de indenização de vítima de mesotelioma contra a empresa Geórgia Pacific (G-P), que fabricava produtos à base de crisotila, também conhecido como calídria, proveniente da mina da Union Carbide na Califórnia. Bernstein compareceu na condição de expert para defender a G-P, como o fizera anteriormente para a Union Carbide.



O tiro saiu pela culatra. Ao ser interpelado pelo advogado dos familiares da vítima, Rick Nemeroff, revelou, entre outras coisas, que a indústria brasileira do amianto financiou suas pesquisas com a crisotila. A transcrição do depoimento tem 143 páginas. Abaixo alguns trechos importantes. Você vai descobrir que certas informações disseminadas por e sobre Bernstein, inclusive no Brasil, não correspondem à verdade factual. P refere-se às perguntas dos advogados. R, às respostas de Bernstein.



(…)



P. Doutor, quanto você recebe atualmente por hora de trabalho?



R. Em moeda local, na Suíça, meu preço é 506 francos-suíços por hora.



P. Convertidos em dólares americanos, é quanto?



R. Suponho que US$ 415 por hora.



(…)



P. Você tem falado a este júri sobre seus estudos com crisotila. Eles foram realizados a pedido da Union Carbide [dos Estados Unidos], do setor de mineração da crisotila no Brasil, do Instituto de Asbesto e do governo do Canadá. Isso é correto?



R. Correto.



P. Suponho que contou a este júri que, nas décadas de 1960 e 1970, quando você descobriu que a crisotila causava mesotelioma, os seus estudos não eram financiados por esses grupos, eram?



R. Eles foram financiados por outros grupos.



P. Outros grupos?



R. Hum-hum.



P. E, agora, que trabalha para grupos de mineração ou industrialização da crisotila, você próprio está se distanciando dos seus estudos iniciais, dizendo: no passado, nós cometemos erros, demos doses exageradas para os ratos e assim por diante. Isso é parte do seu testemunho, aqui, ao júri?



R. É parte dele.



(…)



P. Quanto os advogados, representando a Union Carbide, ajudaram a financiar seus estudos? Conte a este júri quanto você recebeu deles para fazer o trabalho que você está fazendo hoje neste tribunal?



R. Eles me pediram para fazer uma avaliação científica.



P. Quanto eles pagaram em dinheiro para você? Pode ser em francos ou dólares.



R. Eu não tenho isso em mãos no momento.



P. Refrescaria a sua lembrança se eu lhe mostrasse que os representantes da Union Carbide [um dos clientes de Bernstein e ré em muitos casos de amianto nos Estados Unidos] admitem ter pago a você US$ 400.623,30 por sua participação em audiências de litígio?



(…)



Corte. Ouça. Pode me ouvir? Pode me ver e ouvir? Leia meus lábios. Quanto a Union Carbide, por meio dos advogados dela, pagou a você?



R. Não tenho o total exato na minha frente. Me lembro que é cerca de 100 mil francos suíços.



(…)



P. Você nos falou a respeito dos seus estudos; repetidamente disse que a EPA [Agência de Proteção Ambiental, dos EUA] e a Comissão Européia vieram até você para fazer alguma coisa. Nem a EPA nem a Comissão Européia jamais procuraram você para fazer um estudo sobre amianto, procuraram?



R. Não, eles não me procuraram.



P. Então, se este júri ficou com a impressão de que EPA e a Comissão Européia procuraram você devido às suas opiniões sobre amianto, isso seria incorreto, certo?



R. Sim.



(…)



P. Eu entendo que epidemiologia (…) é o estudo das pessoas e de fatores que causam doenças. Você concorda comigo?



R. Concordo.



P. E você, senhor, não é epidemiologista?



R. Eu não sou.



P. Então, seria justo afirmar que você estuda amianto em ratos para ver o que acontece?



R. É verdade.



P. Em relação às suas qualificações, senhor, você não é higienista industrial, é?



R. Eu não sou.



P. E não é médico?



R. Eu não sou.



P. E não é patologista?



R. Eu não sou.



(…)



P. E o senhor discorda de todas as agências que dizem que o amianto crisotila pode causar mesotelioma [câncer agressivo e fatal de pleura, pulmão, peritônio, pericárdio e diafragma; a média de sobrevida após o diagnóstico é de 1 ano], não é correto?



R. Correto.



P. E você discorda de todos os países que baniram o amianto, inclusive daquele que você escolheu morar, não é correto?



R. Correto.



P. E as suas conclusões são baseadas nos estudos financiados por esta companhia, com licença, não por esta companhia, mas financiados por companhias que atuam na mineração e fabricação de produtos com amianto crisotila?



(…)



“SILÊNCIO CONSTRANGEDOR SOBRE A QUANTIA PAGA CHEIRA MAL”



As pesquisas de Bernstein e suas conclusões foram usadas pela indústria no mundo inteiro, inclusive no Brasil, com os objetivos de: inocentar a crisotila dos males do amianto, adiar leis e regulamentos de restrição ou banimento do mineral e não pagar indenizações às vítimas. Desde o início do século 20, já se sabia que o amianto causa asbestose, mais conhecida como “pulmão de pedra”. A doença provoca o “endurecimento” do pulmão, levando pouco a pouco à perda progressiva da capacidade respiratória; pode evoluir para a morte — a chamada morte lenta. Na década de 1940, comprovou-se que era cancerígeno.



Em 3 de setembro, esta repórter enviou seu primeiro e-mail a David Bernstein. Perguntou:



1) Sabemos que teve pesquisas financiadas pela indústria brasileira do amianto. O senhor confirma isso? Que companhia, especificamente, financiou seu trabalho?



2) Se a informação que temos é totalmente verdadeira, poderia nos dizer quanto recebeu? Para que pesquisas esses financiamentos foram utilizados? Uma delas é sobre a biopersistência da crisotila brasileira. Há outras?



Primeiro e-mail, nenhuma resposta. Segundo, idem. Terceiro, também. No quarto: “Todos os financiamentos estão referidos na primeira página de cada publicação e se você quiser mais informação, por favor, contate as respectivas companhias”.



Solicitamos então o envio de uma cópia dos trabalhos por e-mail. Ou, considerando que eram públicos, que dissesse o nome das empresas que o financiaram e quanto pagaram. Esquivou-se, de novo: “Estou viajando e não os tenho disponíveis. Você pode fazer o download deles no website da revista Inhalation Toxicology. Espero que você leia as publicações”.



Ao mesmo tempo, questionamos Marina Júlia de Aquino, presidente-executiva do IBC. Por meio de sua assessoria da imprensa, devolveu, por e-mail, a bola para Bernstein: “Quando o Instituto Brasileiro do Crisotila foi criado, o Dr. David Bernstein já havia realizado suas pesquisas. A pergunta, portanto, deve ser encaminhada diretamente a ele”.



Perguntamos também à Eternit. Apesar de vários e-mails e contatos telefônicos desta repórter com assessoria de imprensa do Grupo, silêncio total. A indústria brasileira que financiou as pesquisas de Bernstein sobre a crisotila foi justamente a mineradora do Grupo Eternit, a SAMA, em Minaçu, norte de Goiás. A SAMA é responsável pela única mina de amianto em exploração no Brasil — a de Cana Brava. Descobrimos duas publicações, onde a SAMA é citada como financiadora; ironicamente, uma delas, no próprio site do IBC, em português e inglês.



“Cheira mal o silêncio constrangedor de Bernstein e de seus clientes, quando solicitados a divulgar quanto a indústria brasileira do amianto pagou pelos serviços do cientista”, vaticina o consultor ambiental Barry Castleman, autor do livro Asbestos: Medical and Legal Aspects (Amianto: Aspectos Médicos e Legais).



Castleman é, desde 1999, consultor do Banco Mundial e da Comissão Européia para assuntos relativos ao amianto. É também testemunha-expert nas Cortes americanas sobre matérias de saúde pública e história corporativa do amianto. Por ano, atua em 20 a 30 processos, quase todos casos de mesotelioma. Ele denuncia: “Bernstein continuará sendo pago pelos negócios do amianto, inclusive do Brasil, enquanto houver ações financiadas pela indústria para defender seus produtos. Ele é o fim de uma longa tradição de cientistas contratados para publicar pesquisas e conclusões em saúde pública favoráveis à indústria do amianto”.



“Em 1999, quando o Bernstein depôs na Câmara dos Deputados, bem que estranhamos o fato de ele só andar com o pessoal da indústria. Agora sabemos o motivo”, observa Fernanda Giannasi. “Bernstein participa de uma orquestração internacional muito bem engendrada para sustentar em todo o mundo a ausência de nocividade da fibra assassina. Médicos das nossas mais prestigiosas faculdades de medicina fazem parte dela. Bernstein, como dizem os americanos, é o melhor que o dinheiro pode comprar.”



Laurie Kazan-Allen, coordenadora do International Ban Asbestos Secretariat (Secretariado Internacional pelo Banimento do Amianto, o IBAS), sediado na Inglaterra, fustiga: “Já que David Bernstein não é epidemiologista, não é higienista industrial, não é médico ou patologista e todas as entidades científicas rejeitam as conclusões dele de que a crisotila não é cancerígena, estou muito curiosa para saber que serviços ele presta para merecer tanto dinheiro dos réus do amianto, as mineradoras e indústrias do setor”.



“O argumento dele é ridículo”, afirma o médico David Egilman, professor adjunto de Clínica Médica da Brown University, em Massachusetts, EUA, e testemunha em disputas judiciais para uma companhia que foi proprietária de uma mina de amianto. “Ele só enxerga ‘biopersistência’ no pulmão e todo mundo concorda que a crisotila causa câncer no pulmão. A crisotila é o tipo de fibra mais ‘biopersistente’ na pleura; assim, se ‘biopersistência’ é a questão-chave para a carcinogenicidade, então a crisotila é a principal causa de mesotelioma. Para tanto dinheiro assim, eles deveriam ter arranjado uma teoria melhor.”



“O fato de a crisotila ser menos biopersistente não significa que seja inócua à saúde; é como fumaça do cigarro”, compara o médico Ubiratan de Paula Santos, professor colaborador da disciplina de Pneumologia do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (Incor/HC/FMUSP). “A fumaça não tem biopersistência alguma. Entra e vai embora. Mas, ao fumar todo dia, você vai provocando e renovando a lesão. Resultado: assim como o cigarro no longo prazo pode causar câncer de pulmão, a crisotila pode ocasionar câncer de pulmão e mesotelioma.”



Na verdade, o trabalho de Bernstein segue o modelo da “ciência do tabaco”. Sempre que algo pode ameaçar a sua sobrevivência, cria-se uma nova teoria para protelar a discussão. É o que David Michaels chama de ciência da defesa do produto no seu livro Doubt is Their Product (Dúvida é o produto deles). O título vem de um memorando interno da indústria do tabaco que dizia “a dúvida é o nosso produto”.



“O memorando dizia que enquanto se mantivesse o debate sobre se fumar mata, seria possível retardar as normas reguladoras”, expõe Castleman. “É o que a indústria do amianto faz desde a década de 1930, quando já se manipulavam as pesquisas para que a discussão não ganhasse repercussão e o assunto não entrasse em debate. Sempre havia um cientista importante que tinha feito uma pesquisa que negava o malefício descoberto.”



“Quantos estudos que atestaram a ‘ausência de risco’ da crisotila não foram financiados ou apoiados de certa forma pela indústria do amianto? Eu estou tentando me lembrar de um!”, ironiza o historiador especializado em negócios corporativos, professor e pesquisador inglês Geoffrey Tweedale, autor do livro Defending the Indefensible: The Global Asbestos Industry and its Fight for Survival (Defendendo o Indefensível: A Indústria Global do Amianto e sua Luta pela Sobrevivência). O também historiador JocK McCulloch é seu co-autor.



Tweedale é taxativo: “As táticas usadas pela indústria do amianto no Brasil não são novas; foram formuladas e usadas ao longo de décadas. Certamente na Europa a indústria do amianto influenciou (e muitas vezes financiou) médicos, jornalistas e políticos de várias maneiras. No Reino Unido, eu não estou a par de nenhum caso de pagamento de propina para sindicalistas e membros do judiciário. Nesse sentido, a situação brasileira é talvez ainda mais surpreendente”.



“DENÚNCIAS GRAVES”. “CONFLITO DE INTERESSES FLAGRANTE”



De fato, a história se repete. O que o Brasil fez foi apenas reproduzir o modelo que existia lá fora. Nada de novo. A indústria brasileira financiou a pesquisa de Bernstein que “livra cara” da crisotila brasileira. Curiosamente, bancou e banca boa parte das pesquisas sobre amianto dos médicos Mário Terra Filho, Ericson Bagatin e Luiz Eduardo Nery, respectivamente, professores da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). É deles o estudo que levou à conclusão de que nenhum trabalhador brasileiro que começou a trabalhar com amianto após 1980 adoeceu. Um mantra repetido à exaustão pelo lobby do amianto.



A reportagem Médicos disseram que Manoel estava bem de saúde. Mas ele tinha câncer no pulmão, publicada pelo Viomundo em 14 de julho, denunciou ainda que:



1) Mário Terra Filho, Ericson Bagatin e Luiz Eduardo Nery, responsáveis por pesquisas com amianto, são os mesmos médicos que, através de empresa privada que mantêm em sociedade, participam das Juntas Médicas de Acordos Extrajudiciais com fins de indenização das vítimas pelos danos provocados pela exposição ao amianto.



2) Desse modo, fazem pesquisa sobre o amianto — financiada inclusive com dinheiro público –, diagnóstico de ex-empregados do setor — como consultores da empresa e com financiamento privado — e ainda interferem no valor das indenizações, já que indicam o grau de incapacidade e a classe correspondente no referido Acordo. Privado e público se confundem na cabeça dos ex-empregados. Onde começa um e termina o outro?



3) Apresentam conflito de interesse tanto na relação médico-paciente quanto na realização de suas pesquisas sobre amianto.



4) Omitem informações importantes aos órgãos de fomento à pesquisa científica do País.



5) Escondem informações cruciais às comissões de ética em pesquisa das suas próprias instituições. Foi o que aconteceu com o projeto Exposição ambiental ao asbesto: avaliação dos riscos e efeitos na saúde apresentado à Comissão de Ética para Análise de Projetos de Pesquisa (CAPPesq) da Diretoria Clínica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. O orçamento previsto era de 4 milhões de reais. Foi revelado à CAPPesq apenas 1 milhão de reais do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento (CNPq). Sonegou-se que boa parte do valor restante seria financiado pela indústria do amianto no Brasil.



“Nada disso foi dito nem descrito quando [2006] da apresentação do projeto à CAPPesq”, afirma Euclides Castilho, seu presidente à época e professor titular do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP. “Vejo como uma situação grave. Demonstra conflito de interesse flagrante. Fere a resolução 196/96 da Conep.” Conep é a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. É uma comissão do Conselho Nacional de Saúde. Seu princípio maior é o controle social, a defesa da sociedade.



“A conduta deles é muito típica de médicos financiados pela indústria”, observa Geoffrey Tweedale. “Nomeie um país onde isso não tenha acontecido. Não existe!”



Laurie Kazan-Allen compara o caso à situação na Índia: “A vergonhosa situação da comunidade médica na Índia em relação aos trabalhadores do setor do amianto é bem parecida ao escândalo dos pesquisadores brasileiros que receberam financiamento da indústria do amianto para fazer pesquisa que, convenientemente, mostrou que a crisotila brasileira não é perigosa”. Semana passada, em conjunto com vários colegas indianos, Laurie lançou, simultaneamente, em Bombaim e Amsterdã o livro India’s Asbestos Time Bomb (Amianto, uma Bomba Relógio na Índia). Coincidentemente, um relatório que, entre outras bombas, condena médicos indianos por acordos secretos com a indústria local do amianto.



“Como esses médicos conseguem dormir, sabendo que estão agindo contra nós, trabalhadores?”, indigna-se Eliezer de Souza, presidente da Abrea, contaminado pelo amianto. “É muita desumanidade, irresponsabilidade e falta de ética.”



“As denúncias publicadas pelo Viomundo mudaram a história no Brasil. São um divisor de águas: antes e depois delas”, afirma Fernanda Giannasi, símbolo da luta contra o amianto no País. “Muita gente foi enganada por esses médicos da indústria travestidos de pesquisadores neutros e professores éticos das nossas mais importantes universidades.”



“Os juízes, ao lerem um relatório deles, aceitavam-no como a grande verdade científica. Os trabalhadores acreditavam que estavam sendo encaminhados a médicos ilibados de faculdades da maior credibilidade. Políticos os reverenciavam assim como a imprensa nacional que, antes de publicar qualquer queixa nossa, ia ouvir essas ‘autoridades médicas’”, ilustra Fernanda Giannasi. “Agora, está provado que nem os médicos nem as pesquisas deles são isentas. Ao contrário. A pesquisa é um relatório feito sob encomenda para a indústria do amianto. Eles macularam a imagem de suas instituições, que acabaram legitimando as teses da segurança do uso da crisotila no país e sua inocuidade à saúde pública.”



CREMESP ABRE SINDICÂNCIA. USP PROMETE APURAÇÃO ISENTA



Baseados nas reportagens Aldo Vicentin, mais uma vítima do Amianto e Médicos disseram que Manoel estava bem de saúde. Mas ele tinha câncer no pulmão, publicadas pelo Viomundo, a Abrea solicitou ao Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) e às instituições envolvidas a apuração das denúncias. A Abrea representa milhares de vítimas do amianto no País, organizadas em seis estados da nossa federação — São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Paraná, Goiás e, mais recentemente, Minas Gerais.



“São fatos graves que estão sendo denunciados”, diz o médico Henrique Carlos Gonçalves, presidente do Cremesp. “A luta dos trabalhadores expostos ao amianto é perfeitamente correta do ponto de vista social. E o Cremesp, além de ser um órgão de fiscalização do exercício da Medicina, é historicamente comprometido com as lutas sociais.” O Cremesp abriu imediatamente a sindicância nº 096142.



Na USP, a denúncia foi feita diretamente ao diretor clínico do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina, o professor José Otávio Auler Jr. O alvo é o professor Mário Terra Filho, chefe do Ambulatório de Pneumologia Ocupacional do Incor, subordinado ao HC-FMUSP. Rapidamente, o doutor Auler criou uma comissão de averiguação para apurar o caso; ela tem até 18 de outubro para apresentar suas conclusões. “A apuração será isenta, neutra”, promete.



Na Unicamp, a denúncia foi encaminhada à coordenadora do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas, a professora Carmen Sílvia Bertuzzo. O alvo é Ericson Bagatin, professor de saúde ocupacional. “Abrimos uma sindicância para apurar esses fatos; estamos no meio dessa averiguação”, informa a professora Carmen. “Assim que terminarmos, encaminharemos nosso parecer final.”



“Esse projeto de pesquisa não passou pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unifesp”, diz o seu coordenador, o professor José Osmar Pestana Medina. “A questão está sendo discutida no âmbito da USP e do Conselho Regional de Medicina.” O alvo é Luiz Eduardo Nery, professor de Pneumologia.



CERTIDÃO DE ÓBITO DE MANOEL: AMIANTO NÃO APARECE. “MEDO”.



A reportagem Manoel estava bem de saúde. Mas ele tinha câncer no pulmão foi publicada no dia 14 de julho. Em 6 de agosto Manoel de Souza e Silva Júnior, 64 anos, faleceu em decorrência de um câncer de pulmão causado por amianto e cigarro. Trabalhou na SAMA de agosto de 1982 a novembro de 1996.



“Está muito difícil. A gente sente bastante falta do Manoel”, chora a esposa, dona Maria Lúcia, que em agosto completaria 45 anos de casamento. “A minha vida se foi.”



“Na última vez em que o Manoel foi ao escritório da SAMA fazer exame, tinha biscoito, lanchinho”, relembra. “O Manoel disse: ‘querem comprar a gente com isso’. Estava inconformado, enfurecido. Tinha perdido um amigo, o Ildo, que trabalhava no escritório e morreu de câncer do pulmão. Disseram que era porque fumava demais. O Ildo nunca pôs um cigarro na boca e ainda falava para todo mundo não fumar!”



“Nesses anos todos, aquela cambada de safados da SAMA e os médicos ficaram impunes. Não imaginavam que um operário fosse abrir o bico”, fala já com orgulho. “Agora, quero que todos paguem, inclusive os médicos da Junta Médica. Não só pelo o que fizeram com o Manoel, mas por todos os operários que foram vítimas do mesmo esquema.”



“Bem no fim, quando tinha apenas alguns momentos de lucidez, o Manoel pediu para mim e os sete filhos: ‘Não larguem a luta. Vão até o fim’”, emociona-se. “Nós iremos!”



“Em Goiás, o medo de represálias da SAMA é tamanho que a palavra amianto não aparece na certidão de óbito do meu pai”, revela a filha Lúcia de Souza e Silva Marques, a Lucinha. “E isso apesar de apresentarmos o laudo do doutor Ubiratan de Paula Santos, da disciplina de Pneumologia da Faculdade de Medicina da USP, atestando que o câncer de pulmão foi causado pelo amianto e pelo cigarro.”



“Nós insistimos para que constasse a palavra amianto”, enfatiza Cláudia de Souza e Silva, outra filha do senhor Manoel. “O mais próximo que a médica chegou foi fibrose pulmonar, que é um problema que pode ser causado pelo amianto.” No caso do amianto, essa fibrose é denominada asbestose.



“Inegavelmente, há um conluio, envolvendo os médicos da Junta Médica e o ‘doutor’ David Bernstein, para ocultar os casos de doenças relacionadas ao amianto e contribuir para a invisibilidade delas no País”, arremata Fernanda Giannasi.“A ‘ausência’ de doentes e de estatísticas adia o debate para o banimento da fibra cancerígena. Sob o pretexto de haver dúvidas se o amianto brasileiro goiano é realmente nocivo, nossos políticos se esquivam de pôr fim a esta tragédia ecossanitária sem precedentes na história industrial moderna. A dúvida é produto deles, não nosso. Nós temos certeza. O amianto mata!”