Ao Ministério da Defesa
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Brasil
c/c: Ministério do Meio Ambiente
Ref: Leilão público do porta-aviões São Paulo
Exmo. Sr. Ministro Fernando Azevedo e Silva,
Chegou ao nosso conhecimento que o
porta-aviões São Paulo / Foch (A-12) passará por um novo processo de leilão,
após a primeira tentativa de venda não ter ocorrido em outubro de 2.020. De acordo com a Nota Pública n°. 67/2020, o processo de
pré-credenciamento foi recentemente finalizado, com três empresas atendendo aos
requisitos
previstos no edital.
Por ser a França a
proprietária original do navio, a cláusula contratual de venda do São Paulo dá às autoridades
francesas a última palavra sobre onde o porta-aviões pode ser desmantelado. A
França já lhes comunicou que apenas os estaleiros de reciclagem de navios aprovados
e incluídos na Lista da União Europeia estão autorizados a participar da
licitação. Embora a decisão da França tenha sido seguida pelo Brasil durante o
leilão malsucedido anteriormente, parece que este não é o caso do atual
processo de leilão. Nem todas as empresas concorrentes acreditadas estão
incluídas na lista da União Europeia de instalações aprovadas de reciclagem de
navios. Em particular, estamos preocupados que a Aratu Serviços Marítimos esteja
representando os interesses de um estaleiro localizado nas praias do sul da
Ásia. Aratu, durante o processo do ano passado, foi a representante do
estaleiro naval indiano JRD.
Nas praias de Alang, Chattogram e Gadani, no sul da Ásia, é impossível conter a poluição, inclusive de metais pesados e resíduos de óleo, pois não há
estruturas e pisos impermeáveis nas zonas primárias de corte. Além disso, o porta-aviões São Paulo contém grandes quantidades de
amianto que precisam ser manuseadas e descartadas sem expor ao risco de câncer os
trabalhadores e as comunidades vizinhas. A falta de equipamentos de proteção
individual (EPIs) adequados, ao longo da praia, onde os navios ficam
encalhados, bem como a falta de capacidade adequada de gerenciamento de
resíduos à jusante, é motivo de grande preocupação. A falta de equipamentos de
emergência e instalações hospitalares, que, em caso de acidente durante o
processo de desmanche, são necessárias, é inaceitável.
Permitir a exportação do
porta-aviões São Paulo para as praias do sul da Ásia constituirá uma violação
do direito internacional. O Brasil é signatário da Convenção da Basileia sobre
o “Controle de Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e seu
Depósito”, a qual foi promulgada pelo Decreto nº. 875 de 19/7/1993[1],
sob a qual estão regulamentados o
amianto e vários outros materiais perigosos contidos na estrutura do São Paulo.
Observamos que a Convenção da Basileia afirma expressamente que: “Para
os fins desta Convenção, qualquer movimento transfronteiriço de resíduos
perigosos ou de outros rejeitos: [...] (c) com o consentimento de Estados obtido
por meio de falsificação, descrição enganosa ou fraude; ou […] (e) que resulte num
depósito deliberado (por exemplo, “dumping”) de resíduos perigosos ou de outros
resíduos, caracterizando violação da presente Convenção e de princípios gerais
do direito internacional, será considerado tráfico ilegal.”, sic.
Além disso: “No
caso de um movimento transfronteiriço de resíduos perigosos ou outros resíduos considerado
tráfico ilegal em função da conduta do exportador ou gerador, o Estado de
exportação deverá assegurar que os resíduos em questão sejam: (a) levados de
volta pelo exportador ou pelo gerador ou, se necessário, pelo próprio Estado para
dentro de se (sic) território ou, se isto for impraticável, (b) depositados
de alguma outra forma de acordo com os dispositivos da presente Convenção, em
um prazo de 30 dias a contar da data em que o Estado de exportação foi
informado do tráfico ilegal ou em qualquer outro prazo acordado entre os Estados
interessados. Para esse fim, as Partes interessadas não deverão se opor,
dificultar ou impedir o retorno desses resíduos para o Estado de exportação.” (Artigo
9.2), sic.
Entre as
obrigações exigidas pela Convenção da Basiléia, está o requisito da notificação
e consentimento de todos os países importadores e de trânsito, que deve incluir
uma caracterização completa das quantidades e tipos de materiais perigosos a
bordo (Artigo 6). Este inventário é um pré-requisito para qualquer movimentação
posterior.
Além disso, a
Convenção exige que nenhuma exportação seja feita se houver motivos para
acreditar que as instalações de reciclagem ou de gerenciamento dos resíduos
empregado não se constituam numa gestão ambientalmente correta nos termos da
Convenção. Os estaleiros de desmanche de navios que operam nas praias sujeitas
às marés no sul da Ásia são bem conhecidos por suas práticas perigosas e
poluentes.[2]
Com base nas
informações prestadas, rogamos, portanto, ao Brasil que garanta que o São Paulo
não acabe em uma praia do sul da Ásia para desmanche e que seja reciclado ou
convertido com segurança num estaleiro aprovado pela União Europeia, como
previamente requerido pela França. É bastante sabido - e bem-vindo em todo o
mundo - que o Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu em novembro de 2017 a
mineração, fabricação, transporte e todos os usos da crisotila (amianto branco)
em nível nacional. Exportar amianto ou produtos que o contenham, como o
porta-aviões São Paulo, para sociedades mais vulneráveis socioambientalmente
seria imoral e condenado como um duplo padrão e uma injustiça ambiental. Caso
São Paulo se dirija ao sul da Ásia para demolição, o Brasil pode estar sujeito
aos mesmos protestos públicos que a França sofreu quando tentou desmantelar o
navio irmão do São Paulo, o Clemenceau, na Índia. Uma ação legal forçou a França a trazer o
Clemenceau de volta à Europa para reciclagem segura.
Permanecemos à
disposição para assisti-los naquilo que for necessário sobre esse assunto, e
solicitamos gentilmente que V. Excias. nos mantenham informados sobre quais
ações pretendem adotar para garantir que o porta-aviões São Paulo não termine
prejudicando trabalhadores, comunidades locais e ambientes costeiros sensíveis
no sul da Ásia.
Ingvild
Jenssen Fernanda Giannasi
Diretor Executivo Assessora para Saúde e Meio Ambiente
NGO Shipbreaking Platform ABREA
Em nome dos membros da ONG Shipbreaking
Platform (Plataforma de Desmanche de Navios):
Basel Action Network (ban)
BAN Asbestos France
International Ban Asbestos Secretariat (IBAS)
Tradução do documento original em inglês:
Fernanda Giannasi/ABREA
[1]https://www.icmbio.gov.br/cepsul/images/stories/legislacao/Decretos/1993/dec_875_1993_convencaobasileia_residuospeigosos.pdf
[2] Pesquisadores e
jornalistas que visitaram recentemente os estaleiros indianos de demolição de
navios, muitas vezes sem aviso prévio e disfarçados, documentaram uma realidade
que contrasta fortemente com os esforços da indústria de promover o chamado greenwashing
(“lavagem verde”, que é uma maneira de maquiar irregularidades do ponto de
vista ambiental) nas praias. Em 2016, DanWatch revelou as condições terríveis
em um canteiro naval que a Maersk e a ClassNK aprovaram como seguro e
ambientalmente correto (https://old.danwatch.dk/en/undersogelse/maersk-and-the-hazardous-waste/). Mais recentemente, a TV francesa (https://www.francetvinfo.fr/economie/transports/chantiers-navals-de-saint-nazaire/inde-des-chantiers-navals-de-demolition-qui-font-scandale_3505729.html), a BBC britânica (https://www.bbc.co.uk/news/extra/ao726ind7u/shipbreaking), o programa holandês ZEMBLA (https://www.youtube.com/watch?v=CaxkaxW8uUE&t=9s) e a TV islandesa (https://www.ruv.is/kveikur/where-ships-go-to-die/) trouxeram relatos terríveis das atividades de
demolição dos navios em Alang, na Índia.
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