O GRANDE PROCESSO do FICA
por PX SILVEIRA para "DIÁRIO DA MANHÃ"
pxsilveira@me.com
O Fica chegou outra vez. É muito bom sentir que a Cidade de Goiás se transforma em uma sala de estar do mundo. Alemães, coreanos, ingleses, americanos, franceses, italianos, portugueses, indianos, russos, brasileiros e outros de outras tantas nacionalidades formam uma bolha cosmopolita que vem descer onde pastam as nossas carências, para logo depois estourar nos deixando de cara com a realidade de Estado periférico e culturalmente mal gerido.
Salve o Fica e seus 5 dias de exceção. É o maior festival ambiental das américas. Um dos maiores do mundo. Ponto do governador Marconi Perillo, que o criou resolutamente no primeiro ano de seu primeiro governo, não sem as contradições, falhas e omissões que insitem em acompanhar os seus acertos.
Ocupando lugar de destaque na lista das debilidades do seu gerenciamento, inclui-se a visão um tanto distorcida do que seja administrar um festival, por parte dos atuais ocupantes da Agepel, sua realizadora.
Não se sabe se querendo nos fazer de ingênuos ou mesmo de idiotas, a Agepel anuncia pela imprensa que "devido a um novo modelo público e inovando o processo, este Fica se torna uma referência na questão…. musical!" Sim, isto mesmo. O festival é de cinema e vídeo ambiental, mas a novidade que se nos apresentam é musical. Claro que isso não soa bem, desafina.
Outro ponto difícil de engolir é quando o presidente da Agepel e do PPS, Gilvane Felipe, diz a jornalistas que reduzir o Fica a uma mostra de cinema é muito pouco. Sendo que uma mostra de cinema de verdade seria tudo o que se quer, quando se fala de cinema.
Trocar de povo ou de gestor?
A prova que se erra cumulativamente na feitura deste festival é que passadas 12 edições o público que o frequenta está mesmo é interessado nas atrações musicais. E a organização erroneamente computa este público como se interessado fosse pelo festival (de cinema), chegando a anunciar 100 mil participantes(?) em algumas edições (mesmo número que se espera para esta). O fato é que não há formação de público para o cinema, apenas empresta-se o da música.
Segundo pesquisa realizada pela oscip que custeia o festival, Instituto Casa Brasil de Cultura, divulgada por Gilvane Felipe a ‘O Popular’, em entrevista à jornalista Rute Guedes (12/06), "nove entre dez pessoas entrevistadas disseram ter ido ao festival por causa dos shows". Ao que o presidente conclui sarcástico, desviando o foco da má gerência do festival –e de quebra, declarando-se inapto: "Não estou dizendo se isso é bom ou ruim. São os dados. Daí o que se faz, troca-se o povo? ".
Festival poluente
Entre outras contradições do Fica reveladoras do espírito incauto dos gestores públicos que temos, está o fato de que mesmo se propondo a ser uma força esclarecida na luta pela conscientização ambiental, o festival nunca sequer se propôs a anular-se ambientalmente perante as emissões de carbono que provoca em suas realizações (já estamos na 13a edição!).
O Fica sempre foi e continua sendo um festival poluente. Para se anular ambientalmente seria necessário calcular suas emissões causadas pelos deslocamentos aéreos de material e de pessoas, calcular o quanto se consome de energia, as atividades de secretaria, alimentação, shows, a pirotecnia (serão gastos R$ 20 mil), seu lixo e tudo mais.
Existem hoje escritórios especializados que se propõem a dimensionar e indicar como anular grandes eventos, recompensando suas emissões por meio de plantio de árvores e outras ações. Mas esta ainda não é uma preocupação do Fica, um festival ambiental realmente paradoxal.
De mineral maravilha a pó assassino
O cineasta João Batista de Andrade, coordenador da primeira edição do Fica, juntamente com Assunção Andrade, me disse tempos depois que ele e a equipe tiveram que tomar uma decisão difícil logo no início dos trabalhos, não aceitando a Sama como patrocinadora do evento.
A Sama, para quem não conhece, é a mineradora de amianto em Minaçu-GO, que assim como o Fica, é uma das maiores do mundo. E o amianto, para quem ainda não sabe, é aquele produto considerado mineral maravilha no início do século passado e que passou a ser o pó assassino logo depois dos anos 50, quando se evidenciaram os males que ele causa à saúde humana.
Não por acaso, o amianto encontra-se banido de mais de 60 países, entre eles, todos os países ditos de primeiro mundo, enquanto que no Brasil, mais precisamente em Goiás, ele é defendido com unhas e dentes -e muito lobby nos bastidores, que inclui, como vimos, financiamentos de campanhas.
Segundo estatísticas oficiais, mais de 50% das residências brasileiras são cobertas com telhas de fibrocimento, cuja matéria-prima é o amianto crisotila "made" in Minaçu. E além disso, o país destaca-se atualmente como segundo maior produtor mundial desse minério.
Amianto, I lobby you
Em meio a estes (des)acontecimentos do festivalescos, tem o amianto, que foi sempre um espectro rondando suas edições. Eu mesmo tentei participar por três vezes, sem êxito algum, com os filmes "Mas agora falando sério", "A grande roubada" e "Amianto, I lobby you", todos sobre a questão do amianto no Brasil e lá…. em Goiás.
E se estes filmes obtiveram reconhecimento em outros festivais ambientais, como o de São Vicente-SP, o primeiro festival ambiental do Brasil, ou o de Bonito-MS, onde o "Amianto, I lobby You" foi contemplado com o prêmio de Júri Popular, no Fica eles não foram sequer selecionados, certamente pela qualidade muito abaixo do que se espera de uma produção goiana, e não pelo tema que incomoda aos sucessivos governantes do Estado e a todos os nossos digníssimos representantes na Câmara Federal que, segundo o deputado federal Ronaldo Caiado, recebem dinheiro da Sama para suas campanhas, inclusive a dele, obviamente. Não é à toa que o lobby continua. O que esperar dos digníssimos uma vez eleitos?
Mais UMA chance
Nesta edição do Fica temos um filme alarmante para todas as empresas que lidam com o amianto –e para o consumidores diretos ou indiretos. É que na Itália já se deu ganho de causa em primeira instância às pessoas que viviam nas imediações das fábricas que manipulavam o amianto.
Documentário criativo e assustador, produzido pela GraffitiDoc, o roteiro de "Polvere – O grande Processo do Amianto" mostra o primeiro mês de audiência do processo penal contra a multinacional Eternit. O julgamento é acompanhado por toda comunidade da pequena cidade de Casale Monferrato, onde há indícios de cerca de 3 mil mortes originadas pelo amianto, incluindo a de operários e simples habitantes.
Atenção, não estamos falando apenas dos funcionários e operários mortos ou dos que deverão ser ressarcidos pelos danos que tiveram à sua saúde. Mas decide-se, também, sobre os danos causados pelo amianto à comunidade na qual está inserida a fábrica: familiares que mantinham contato com as roupas dos trabalhadores, inclusive lavadeiras e passadeiras, garçons que serviam café e refeições nos restaurantes no entorno da fábrica e até pessoas que viviam às margens das rodovias de acesso por onde passavam carregados os caminhões que traziam o amianto in natura, incluindo seus motoristas e carregadores. Poucos escapam da tragédia.
Tem gente sem dormir
A pergunta que o tribunal italiano busca responder pode abrir um precedente mundial: afinal, os gigantes industriais que exploraram o amianto desde o início do século passado (e alguns ainda exploram) já sabiam dos males que ele pode causar? E se sabiam, como tudo indica, quais as providências que foram tomadas para proteger os trabalhores e os consumidores? Até que ponto as companhias que tão somente visam o lucro passam a responder criminalmente pelas consequências que devastam parte da população que, inadivertidamente, tem contato com o amianto?
O filme "Polvere, o grande proesso do amianto" traz informações que o governo brasileiro deveria levar em conta de uma vez por todos. O amianto causa um desastre humano por onde passa. No mundo, cerca de 100 mil pessoas morrem todo ano com algum tipo de doença ligada às suas microfibras. O mesotelioma, um tipo de câncer causado exclusivamente pela inalação do amianto, pode levar até 30 anos para se manifestar. Isto que dizer que mesmo sendo banido da europa em 1999 (com ratificação em 2005) o número de pessoas que vão morrer não vai diminuir nos próximos 20 anos. E no Brasil?
A eliminação do amianto à nossa volta deve envolver a proibição de certos tipos de embreagens e freios de automóveis, componentes de elevadores, trens, vagões de metro, tostadores, linóleos, pisos, tintas, isolantes térmicos e acústicos e uma infinidade de outros produtos (mais de 2 mil produtos contém o amianto em sua formula básica). E esta descontaminação, segundo os diretores de "Polvere", ecoando especialistas, "vai requerer mais de uma década para se processar e ainda vai custar milhares de vítimas".
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