quinta-feira, 30 de agosto de 2018
29/08/2018 às 05h00
O declínio dos poluentes sintéticos
Por José Eli da Veiga
A história das ascensões e quedas do tabaco e do amianto ajuda muito a entender o que apenas começa a acontecer a perversos poluentes oriundos de indústrias químicas, farmacêuticas, alimentares e de cosméticos. Uma longa lista de substâncias que desregulam o sistema endócrino, entre as quais se destacam os famigerados agrotóxicos. Muitas causam diabetes, obesidade infantil e cânceres hormonais, como os de mama, próstata, testículo e tireoide. Pior: em fetos e bebês, chegam a abalar o desenvolvimento cerebral.
Tais guerras começam quando o poder público recebe denúncias de que é insalubre fumar, respirar asbesto ou usar produtos que afetem negativamente ciclos hormonais. Experts muito bem remunerados pelos fabricantes entram em campo para desqualificar os lançadores de alertas. Rapidamente, todos os atores-chave dos licenciamentos - servidores do Executivo, juízes e parlamentares - são persuadidos a manter o status quo por esses 'cambistas da dúvida', como diz a notável historiadora das ciências Naomi Oreskes (Harvard).
A segunda batalha se dá quando surgem sólidos pareceres de respeitáveis instituições de pesquisa - em geral no âmbito da Organização Mundial da Saúde (OMS) - com as evidências dos perigos, quase sempre relacionados a riscos cancerígenos. Seguem-se escaramuças com cientistas contratados pelas indústrias, com resultados bem heterogêneos. Logo surgem restrições na Escandinávia, que se espalham, aos poucos, pelos países mais avançados, demoram bastante para atingir nações emergentes e nem chegam às demais.
A alta periculosidade de vários agroquímicos foi estabelecida pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer
A fase terminal costuma ser anunciada por grandes vitórias judiciais que só se dão quando fica bem transparente que os responsáveis estavam agindo de má-fé, fazendo de tudo para esconder o conhecimento que tinham dos malefícios à saúde coletiva. Ampla publicidade sobre ganância tão peçonhenta faz com que comece a ser bem acolhida a revolta das associações de apoio às vítimas. Primeiro por tribunais e, em seguida, por repartições de proteção à saúde e parlamentos.
Foi no início do século passado que se constituíram as grandes empresas produtoras de cigarros, materiais de construção com amianto e substâncias sintéticas que agridem o sistema endócrino (entre elas os agrotóxicos). Hoje não há cidade no mundo em que fumantes gozem de irrestrita liberdade. E aspirar amianto deixou de ser a regra até no Brasil, um dos países lanterninha.
Chega a vez dos mais de 150 mil produtos químicos de amplo consumo - muitos deles verdadeiras bombas a retardamento - mas sobre os quais pouco se sabe e ainda menos se comenta. Só que a alta periculosidade de vários agroquímicos foi claramente estabelecida, em 2015, na 'Monografia 112' da Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC), vinculada à OMS. Exatos dois anos depois, a Justiça americana fez devassa na maior produtora mundial de agrotóxicos, com perquisição de documentos e e-mails. A investigação revelou que seus funcionários estavam bem a par da natureza cancerígena dos produtos com os quais lidavam.
O escândalo foi decisivo para que um júri de San Francisco (Califórnia, EUA) proferisse, há vinte dias, inusitada sentença favorável a um zelador de escola com câncer linfático. Criou precedente para a longa fila de uns oito mil processos similares que aguardam julgamento, mesmo que instância superior venha a rever o direito à recordista indenização de US$ 289 milhões.
Cabe perguntar por que tal jurisprudência surge tão pouco tempo depois que o licenciamento do mesmo herbicida foi renovado por cinco anos na União Europeia e por três em alguns de seus países-membros mais inclinados à precaução. Será que as provas que sensibilizaram os jurados de San Francisco não convenceram a maioria dos representantes dos 28 Estados na Comissão Europeia e dos 577 deputados da Assembleia Nacional da França?
Nada disso. O que pesou nessas decisões não foi a nocividade do veneno, aspecto sobre o qual já não restam dúvidas. O argumento que impediu a cassação do licenciamento foi o risco de imediata e brutal queda das colheitas por não haver substitutivo amigável.
Alternativa até existe, como demonstra a epopeia que o empresário Leontino Balbo narrou em 18 minutos: https://www.youtube.com/watch?v=ExcAiraNPUA Mas a adoção de seu método tem dois pré-requisitos dos quais fazendeiros costumam fugir como o diabo da cruz: conhecimento e trabalho. Detestam estudar e ter de lidar com muitos empregados.
Vai demorar, portanto, para serem expulsos do mercado os pesticidas cancerígenos e tantos outros desreguladores endócrinos. A menos que inovações tecnológicas saudáveis, e de rápida adoção, venham a revolucionar padrões de produção e consumo legitimados ao longo do século passado. Sem isso, as perspectivas são sombrias, pois continuarão abundantes os mórbidos poluentes sintéticos, por mais conhecidos que sejam seus prejuízos à saúde, à inteligência e à fertilidade dos humanos, mesmo quando não causam câncer.
José Eli da Veiga é professor sênior do IEE/USP (Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo) e autor de Amor à Ciência (Senac, 2017), o mais recente de seus 27 livros. Mantém dois sites: www.zeeli.pro.br e www.sustentaculos.pro.brObrigada