domingo, 27 de agosto de 2017

STF proclama a proibição de todas as formas de amianto no Brasil



Supremo Tribunal Federal (STF), instância máxima da justiça brasileira, responsável pelo controle de constitucionalidade das leis, proclamou na última quinta, 24 de agosto de 2017, que a extração, industrialização, utilização e comercialização de todas as formas de amianto, inclusive o crisotila (amianto branco), violam a Constituição Federal brasileira e não devem prosseguir. 
Estava em exame, de um lado, a constitucionalidade da lei federal que autorizava com restrições a exploração e uso do amianto da variedade crisotila (único tipo admitido, pois as outras variedades já estavam proibidas pela mesma lei), ante os direitos humanos à vida, à saúde e ao meio ambiente equilibrado. E, de outro lado, a validade de leis estaduais e municipais, que haviam proibido o amianto branco em seus respectivos territórios enquanto a lei federal autorizava, numa análise quanto à distribuição de competências legislativas entre a União, Estados e Municípios brasileiros.
O julgamento se desenrolou em duas etapas. No julgamento quanto à lei federal autorizadora da produção e consumo do amianto, o STF construiu uma maioria pró-banimento, por 5 (cinco) votos contra 4 (quatro). Devido ao impedimento de dois ministros que haviam emitido pareceres sobre a causa antes de assumirem as suas cadeiras no Tribunal, o quórum de 11 (ministros) estava reduzido a apenas 9 (nove). Assim, não foi possível alcançar os 6 (votos) exigidos pela Constituição para adeclaração da inconstitucionalidade da lei federal ter efeito geral e vinculante.
A segunda fase do julgamento, no entanto, encarregou-se de resolver o impasse, ao definir na prática a concretização do banimento de todas as formas de amianto no Brasil. Ao examinar o texto da lei estadual de São Paulo que proibiu o amianto em solo paulista, o STF declarou, por 8 (oito) votos contra 2 (dois), a plena aceitação da força legal dessa medida. Todavia, uma circunstância peculiar conferiu a esse pronunciamento um alcance bem mais amplo, de caráter nacional e não apenas estadual. Pelo voto de 6(seis) ministros da atual composição do Supremo, a validade do banimento aprovado em leis estaduais tem fundamento justamente na inconstitucionalidade da lei federal permissiva. Assim, por uma mera questão formal de impedimento de participação de um ministro no processo principal, a inconstitucionalidade não obteve efeito vinculante, embora na prática é assim que ocorrerá.
Após o julgamento, a presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, esclareceu, por meio da sua assessoria de imprensa, que a decisão tomada efetivamente derrubou a autorização do uso do amianto crisotila em todo o território nacional. Durante o julgamento, a presidente do Supremo lembrou que o amianto compromete o futuro das próximas gerações e defendeu seu banimento: "Pelo princípio da precaução, em caso de meio ambiente, na dúvida se deve vedar", disse a magistrada.
Para o ministro Celso de Mello, decano do Tribunal, o emprego desse tipo de amianto está inteiramente vedado no país: “O STF, ao declarar a inconstitucionalidade dessa norma que permitia o amianto crisotila, por maioria absoluta, extirpou do universo jurídico nacional uma regra que permitia, ainda que mediante uso controlado, o emprego do amianto. O emprego do amianto tipo crisotila agora está vedado”, declarou. 
O advogado Roberto Caldas, do escritório Roberto Caldas, Mauro Menezes &Advogados, que representou perante o Supremo as vítimas de contaminação pelo amianto, organizados em torno da Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (ABREA), além da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT),afirmou: Está encerrada a grande guerra pelo banimento do amianto. Agora vamos cuidar do rescaldo: medidas de concretização, assistência e reparação justa às vítimas.”Para o advogado Mauro Menezes, também defensor do banimento do amianto na tribuna do STF, a decisão “reafirma a vocação constitucional brasileira, de forma a exigir que o desenvolvimento econômico observe garantias sociais e ambientais da população”.
Nas palavras de Fernanda Giannasi, reconhecida internacionalmente como ícone da militância anti-amianto no Brasil, “a vitória no STF resulta de ampla construção do movimento social em defesa da saúde dos trabalhadores e deve ser dedicada aos que perderam a vida em decorrência da inalação de fibras cancerígenas de amianto, não podendo assistir o alvorecer da esperança representado por essa decisão judicial”.


domingo, 13 de agosto de 2017

STF: VOTO DO MINISTRO TOFFOLI SOBRE A CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS DO AMIANTO


AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.937 SÃO PAULO
 
VOTO-VISTA
 
O SENHOR MINISTRO DIAS TOFFOLI:
Em 23/11/16, teve início o julgamento da ADPF nº 109 e foi retomado o julgamento das ADI nº 3.356, 3.357 e 3.937, todas ações ajuizadas pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria, em que se discute, respectivamente, a constitucionalidade da Lei nº 13.113/2001 do Município de São Paulo e das leis do Estado de Pernambuco (Lei nº 12.589/2004), do Rio Grande do Sul (Lei nº 11.643/2001) e do Estado de  São Paulo (Lei nº 12.684/2007), que vedam a utilização do amianto nas atividades nelas definidas.
Na ocasião, pedi vista dos autos para melhor analisar a matéria  neles tratada.
 
I.   A JURISPRUDÊNCIA DA CORTE
 
A discussão acerca da constitucionalidade ou não da proibição, pelos estados, da produção e da comercialização de produtos à base de amianto não é nova nesta Corte.
No julgamento das ADI nº 2.656 e 2.396, ocorrido em 2003, este Tribunal declarou a inconstitucionalidade de leis, respectivamente, dos Estados de São Paulo e de Mato Grosso do Sul que proibiam a produção e a comercialização de produtos à base de amianto com fundamento em ofensa à competência privativa da União para dispor sobre comércio exterior, minas e recursos minerais (art. 22, inciso VIII e XII) e para editar normas gerais sobre produção e consumo (art. 24, V), proteção do meio ambiente e controle da poluição (art. 24, VI) e proteção e defesa da saúde (art. 24, XII) (ADI 2.656, Rel. Min. Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, DJ de 1/8/03; ADI 2.396, Rel. Min. Ellen Gracie, Tribunal Pleno, DJ de 1º/8/03).
Em ambos os casos, ressaltou-se o fato de que as normas estaduais em questão iam de encontro ao que dispõe a Lei federal nº 9.055, de 1º de junho de 1995, que permite a extração, a industrialização, a utilização e a comercialização   do   asbesto/amianto   da   variedade   crisotila   (asbesto


 
branco), sendo o mencionado diploma a norma geral federal relativa ao tema. Tal constatação vinha como reforço ao entendimento de que os estados invadiram a competência da União para dispor sobre normas gerais de produção e consumo de amianto.
Após esses julgamentos, o debate foi renovado perante o Tribunal, com o ajuizamento de novas ações de controle concentrado sobre o assunto.
Em 2008, a questão retornou ao plenário da Corte na análise da medida cautelar na ADI nº 3.937 contra nova lei do Estado de São Paulo (Lei nº 12.684/07) proibindo o uso, no referido estado, de produtos, materiais ou artefatos que contenham quaisquer tipos de amianto ou asbesto.
No referido julgamento, o Tribunal, por maioria, não aplicou o entendimento tradicional adotado em 2003 e indeferiu a medida cautelar, fazendo prevalecer a lei estadual, que confere proteção mais adequada  à saúde e ao meio ambiente.
São estas ações (ADI nºs 3.937, 3356 e 3357 e ADPF nº 109) que estão, agora, em julgamento conjunto.
 
II.        ANÁLISE SOB A PERSPECTIVA DA COMPETÊNCIA LEGISLATIVA
 
Em decorrência das competências compartilhadas entre os entes federativos, é inevitável a ocorrência de eventuais conflitos na atuação governamental e legislativa desses entes.
Nesses casos, compete à Suprema Corte, como árbitro da Federação, definir com precisão as competências nas disputas concretas, explicitando critérios coerentes e estáveis de identificação das competências constitucionais.
Já defendia Hans Kelsen que era exatamente nos estados federais que a jurisdição constitucional adquiria a mais considerável importância, pois neles se faz necessária uma instância objetiva que decida os conflitos entre os entes federativos de modo pacífico, como problemas de ordem


 
jurídica, especialmente no que tange às competências constitucionalmente distribuídas.
Essa delimitação, chamada de repartição de competências, é ponto central e indispensável do federalismo, visto se tratar de pressuposto da autonomia dos entes federativos.
No caso brasileiro, a Constituição de 1988 deu ênfase à concepção de um federalismo cooperativo a partir de instrumentos de atuação conjunta dos entes federados, especialmente como forma de superação das desigualdades regionais.
Como adverte Gilberto Bercovici:
 
O federalismo brasileiro, como sistematizado pela CF/88, impõe que os problemas regionais não sejam tratados separadamente do contexto nacional. Isso não significa desconhecer a especifidade regional, mas sim que esta especificidade regional deve ser entendida em sua inserção no todo nacional. (CANO, 1994, p. 317, CARVALHO, 1979, p. 34  4
HOLTHUS, 1996, p. 33)” (O federalismo no Brasil e os limites da competência legislativa e administrativa: memórias e pesquisas. Revista Jurídica, v. 10, n. 90, Brasília: Presidência da República, abr./maio, 2008. p. 8).
 
É esse equilíbrio que se deve buscar na Federação brasileira. Um ponto de estabilidade entre centralização e descentralização, entre unidade e diversidade, entre a realidade nacional e a realidade regional e local.
Ainda nas palavras do citado professor:
 
“(...) A cooperação se faz necessária para que as crescentes necessidades de homogeneização não desemboquem na centralização. A virtude da cooperação é a de buscar resultados unitários e uniformizadores sem esvaziar os poderes e competências dos entes federados em relação à União, mas ressaltando a sua complementaridade. (HESSE, p. 19-21 e ROVIRA, 1986, p. 24-25)”. (op. cit., p. 7).


 
 
 
Nos casos dos autos, há normas estaduais e municipal que versam sobre produção e consumo (art. 24, V, CF/88), proteção do meio  ambiente (art. 24, VI) e proteção e defesa da saúde (art. 24, XII, CF/88). Dessa forma, compete concorrentemente à União a edição de normas gerais e aos estados suplementar a legislação federal no que couber (art. 24, §§ 1º e 2º, CF/88). Somente na hipótese de inexistência de lei federal é que os estados exercerão a competência legislativa plena (art. 24, § 3º, CF/88). Sobrevindo lei federal dispondo sobre normas gerais, a lei estadual terá sua eficácia suspensa naquilo que contrariar a federal (art. 24, § 4º, CF/88).
De igual modo, aos municípios compete legislar sobre assuntos de interesse local e suplementar a legislação federal ou estadual no que couber (art. 30, I e II, CF/88).
A Constituição Federal, todavia, não conceituou normas gerais, embora tal conceituação seja de primordial importância para a delimitação da competência concorrente entre os entes federados. A respeito do tema, Fernanda Dias Menezes de Almeida afirma que há diversidade de conceituações do que sejam normas gerais, algumas “construídas a partir da tentativa ora de identificar os elementos constitutivos das normas gerais, ora de caracterizá-las negativamente, dizendo o que elas não são ou não podem conter” (ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 2000. p. 147).
Dentre os diversos conceitos encontrados na doutrina, merece destaque o que ensina o saudoso professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto, para quem o estabelecimento de diretrizes nacionais cabe à norma geral, restando aos estados-membros editar normas particularizantes para aplicá-las em seus respectivos âmbitos políticos. Confira-se, a propósito, a lição do autor:
 
“Normas gerais são declarações principiológicas que cabem à União editar, no uso de sua competência concorrente limitada,  restrita  ao  estabelecimento  de  diretrizes    nacionais


 
sobre certos assuntos, que deverão ser respeitadas pelos Estados-Membros na feitura de suas legislações, através de normas específicas e particularizantes que as detalharão, de modo que possam ser aplicadas, direta e imediatamente, às relações e situações concretas a que se destinam, em seus respectivos âmbitos políticos” (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Competência concorrente limitada. O problema da conceituação das normas gerais. Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano 25, nº 100, out./dez. 1988. p. 159, grifos nossos).
 
Acrescenta o professor que as normas gerais caracterizam-se por serem nacionais, sobretudo em uma federação, pois têm por finalidade  a preservação daquilo que a Constituição quer que seja nacional”, ou seja, “seu fim é a uniformização do essencial sem cercear o acidental, peculiar das unidades federadas”, o que “se justifica na medida em que a excessiva diversificação normativa prejudique o conjunto do país” (p. 159/160, grifos nossos).
Na sempre clássica obra de Raul Machado Horta, no âmbito da competência concorrente, cabe à União estabelecer normas gerais, que devem ser leis quadros, molduras legislativas, enquanto cabe aos  estados complementá-las mediante o preenchimento dos claros deixados pelas leis de normas gerais, de forma a afeiçoá-las às peculiaridades locais e aperfeiçoar suas finalidades (HORTA, Raul Machado. Estudos de Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1995. p. 419, grifos nossos).
Nesse sentido, também leciona Tércio Sampaio Ferraz:
 
“Ora, o federalismo cooperativo vê na necessidade de uniformização de certos interesses um ponto básico da colaboração. Assim, toda matéria que extravase o interesse circunscrito de uma unidade (estadual, em face da União; municipal, em face do Estado) ou porque é comum (todos têm o mesmo interesse) ou porque envolve tipologias, conceituações que, se particularizadas num âmbito autônomo,   engendrariam


 
conflitos ou dificuldades no intercâmbio nacional, constitui matéria de norma geral” (FERRAZ, Tércio Sampaio. Normas gerais e competência concorrente – uma exegese do art. 24 da Constituição Federal. Revista Trimestral de Direito Público, 
7. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 19, grifos nossos).
 
Nesse sentido, conforme salientado no § 2º do art. 24 da Carta Republicana, “[a] competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados” (grifos nossos).
Ao tempo em que dispõe sobre a competência legislativa  concorrente entre a União e os estados-membros, prevê o art. 24 da Carta de 1988, em seus parágrafos, duas situações em que compete aos estados- membros legislar: (a) quando a União não o faz e, assim, o ente federado, ao regulamentar uma das matérias do art. 24, não encontra limites em norma federal que não existe; e (b) quando a União edita norma geral sobre o tema, a ser observada em todo território nacional, cabendo ao estado a respectiva suplementação, a fim de adequar as prescrições a suas particularidades locais.
Por sua vez, a Constituição de 1988, ao repartir as competências  entre os entes federativos, firmou-se em conformidade com a predominância do interesse. Foram atribuídas à União as matérias e circunstâncias de interesse geral, aos estados-membros, as de interesse regional, e aos municípios, as de interesse local.
Assim sendo, é imperativo que a competência concorrente exercida pela União englobe os interesses nacionais, que não podem ser limitados às fronteiras dos estados-membros.
Aliás, numa federação, é consequência lógica que determinadas matérias sejam uniformemente tratadas pelo ente central, garantindo homogeneidade a certas disposições, notadamente com a edição de normas gerais.
Não estou aqui a defender que o entes estaduais e municipais têm um papel secundário em relação à União, mas a imperatividade de se observarem as regras constitucionais de repartição de competência legislativa concorrente.


 
No modelo vertical de repartição de competências (corporificada na competência concorrente), há atividade conjunta e complementar dos entes, sem implicar hierarquia entre atos normativos de cada ente federado, mas campos de atribuição distintos, predefinidos constitucionalmente.
Não há de se olvidar a relevância de se buscar uma maior descentralização legislativa em favor dos estados e municípios. Deve-se, de fato, assegurar-lhes espaço para a criação e a experimentação legislativa. Todavia, deve-se observar, para tanto, as diretrizes traçadas no texto constitucional quanto à distribuição de competência no condomínio legislativo da Federação.
A excessiva centralização de competências da União deve ser combatida quando essa ultrapassa seu poder legislativo, adentrando na seara das competências dos demais entes federativos, em particularidades que deveriam ser tratadas pelos entes estaduais ou municipais.
Foi o que fez esta Corte na medida cautelar da ADI nº 927, quando o Tribunal deu interpretação conforme a dispositivos da Lei nº 8.666/93 (norma geral federal sobre licitações) para esclarecer que somente teriam aplicação no âmbito da União, por entender que constituíam limitação ilegítima à competência legislativa estadual e municipal (Rel. Min. Carlos Velloso, DJe de 11/11/94).
A competência federal para editar normas gerais não permite que o ente central esgote toda a disciplina normativa, sem deixar competência substancial para o estado-membro. Afinal, conforme está expresso no texto constitucional, sua competência restringe-se à edição de normas gerais.
Se, por um lado, a norma geral não pode impedir o exercício da competência estadual de suplementar as matérias arroladas no art. 24,  por outro, não se pode admitir que a legislação estadual possa adentrar a competência da União e disciplinar a matéria de forma contrária à norma geral federal, desvirtuando o mínimo de unidade normativa almejado pela Constituição Federal.
Conforme   bem   explicitado  pelo  Ministro      Celso   de   Mello  no


 
julgamento da ADI nº 2.903/PB (DJe 19/9/08),
 
“[s]e é certo, de um lado, que, nas hipóteses referidas no art. 24 da Constituição, a União Federal não dispõe de poderes ilimitados que lhe permitam transpor o âmbito das normas gerais, para, assim, invadir, de modo inconstitucional, a esfera de competência normativa dos Estados-membros, não  é menos exato, de outro, que o Estado-membro, em existindo normas gerais veiculadas em leis nacionais (...) não pode ultrapassar os limites da competência meramente suplementar, pois, se tal ocorrer, o diploma legislativo estadual incidirá, diretamente, no vício da inconstitucionalidade. A edição, por determinado Estado- membro, de lei que contrarie, frontalmente, critérios mínimos legitimamente veiculados, em sede de normas gerais, pela União Federal ofende, de modo direto, o texto da Carta Política. (…) Os Estados-membros e o Distrito Federal não podem, mediante legislação autônoma, agindo ‘ultra vires’, transgredir a legislação fundamental ou de princípios que a União Federal fez editar no desempenho legítimo de sua competência constitucional, e de cujo exercício deriva o poder de fixar, validamente, diretrizes e bases gerais pertinentes a determinada matéria (…).”
 
A inobservância dos limites constitucionais impostos ao exercício da competência concorrente, ou seja, a invasão do campo de atuação alheio, implica a inconstitucionalidade formal da lei, seja ela federal, estadual ou municipal.
Por essa razão, peço vênia aos eminentes Ministros que assim entendem, mas não vejo espaço constitucional para a tese de que, em matéria de competência legislativa concorrente – inclusive em relação à proteção do consumidor, da saúde e do meio ambiente -, as normas estaduais e municipais devam prevalecer sobre a norma geral federal caso elas sejam mais protetivas e estejam em oposição à disciplina federal.
Não nos parece que esta conclusão decorra do disposto nos arts. 24 e


 
30 da Constituição Federal. A Constituição de 1988 estabeleceu uma competência concorrente não cumulativa, na qual há expressa delimitação dos modos de atuação de cada ente federativo, os quais não se sobrepõem.
Segundo os referidos mandamentos constitucionais, compete à União editar as normas gerais, não cabendo aos estados contrariar ou substituir o que definido em norma geral, mas sim suplementar. Tanto isso é verdade que o § 4º do art. 24 da Constituição estabelece que “a superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário”.
Como se vê, o texto constitucional não admite antinomias entre a norma geral e a norma suplementar, pois a contrariedade direta entre as legislações implica a ocorrência de invasão de competência. A norma estadual ou municipal é inválida não pelo fato de contrariar materialmente a lei nacional, mas por, ao assim proceder, atuar fora de sua competência constitucional de suplementar (complementar) as linhas gerais definidas pela União.
Caso a Constituição desejasse permitir aos entes federados editar legislação mais protetiva em detrimento da competência da União, teria feito expressamente a ressalva, o que, a toda evidência, não ocorreu.
É a Constituição Federal quem dá vida e existência à Federação. Embora seja possível traçar linhas teóricas de federalismo abstratamente considerado, é o texto constitucional de cada país que define suas características reais e o modelo de repartição das competências. Na clássica lição de Raul Machado Horta, “há uma relação de causalidade entre Constituição Federal e Estado Federal” (Direito constitucional. 2  ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p. 303).
Daí por que, a meu juízo, há incompetência dos estados e dos municípios para disciplinar matérias em contrariedade ao que foi previsto pela União, seja em que sentido for. Não se trata de analisar qual legislação é mais protetiva, mas quem tem competência legislativa para tanto.
A  rigor,  se  todos  os  estados  da  federação  legislassem   proibindo


 
determinada prática autorizada pela União, sob os auspícios de ser mais restritiva e protetiva do meio ambiente e da saúde pública, haveria um completo esvaziamento da norma geral federal. Em outras palavras, a edição das legislações estaduais tornaria letra morta a lei federal, em flagrante violação do § 1º do art. 24 da Constituição de 1988.
Tratando-se de competência legislativa concorrente, as normas nacionais, regionais e locais devem conviver em harmonia dentro do mesmo território. Essa é uma importante diretriz para o intérprete na análise de conflitos legislativos em matéria de competência  concorrente.
Isso não quer dizer que as normas suplementares não possam ser mais restritivas que as normas gerais federais. Os estados podem ampliar a proteção, estabelecendo novas restrições e condições ao exercício da atividade, bem como regras de segurança e fiscalização mais exigentes, desde que não sejam incompatíveis com a norma geral. Mas os estados não têm competência legislativa para proibir atividade expressamente admitida na lei geral.
É nesse sentido a jurisprudência desta Suprema Corte, a qual corroboro e entendo como a mais correta e a que traz segurança jurídica às regras de fixação de competência.
Foi o caso, por exemplo, das leis estaduais do Estado do Paraná que pretenderam proibir o plantio e a comercialização de substâncias contendo organismos geneticamente modificados em seu território. Como a matéria era regulada pela Lei Federal nº 11.105/05 (Lei da Biossegurança), que estabeleceu normas de segurança e mecanismos de fiscalização das atividades envolvendo tais organismos, as leis estaduais que visavam coibir tais práticas foram declaradas inconstitucionais pelo STF (ADI nºs 3.035/PR e 3.645/PR).
Verifica-se, nos referidos julgados, que não se permitiu que a legislação estadual, embora mais restritiva em favor do meio ambiente e da saúde, afrontasse as respectivas normas federais reguladoras da matéria.
No presente caso, a Lei nº 9.055, em seu art. 1º, proibiu a extração, a


produção, a industrialização, a utilização e a comercialização de todos os tipos de amianto, com exceção da crisotila, vedando, quanto a essa espécie, apenas a pulverização e a venda a granel de fibras em pó.
Na sequência, em seu art. 2º, a lei autorizou a extração, a industrialização, a utilização e a comercialização do asbesto/amianto da variedade crisotila (asbesto branco) na forma definida na lei.
Assim, se a lei federal admite, de modo restrito, o uso do amianto, em tese, a lei estadual ou municipal não poderia proibi-lo totalmente, pois, desse modo, atuaria de forma contrária à prescrição da norma geral federal. Nesse caso, não temos norma suplementar, mas norma contrária/substitutiva à lei geral, em detrimento da competência legislativa da União.
Voltando ao vetor interpretativo de que as normas gerais suplementares devem conviver em harmonia dentro do mesmo território, no caso, a norma supostamente suplementar acaba por anular in totum, naquela unidade da federação, a aplicação da lei nacional.
 
No entanto, pelos fundamentos que serão expostos a seguir, entendo que o art. 2º da Lei federal nº 9.055/1995 passou por um processo de inconstitucionalização e, no momento atual, não mais se compatibiliza com a Constituição de 1988, razão pela qual os estados passaram a ter competência legislativa plena sobre a matéria até que sobrevenha eventual nova legislação federal, nos termos do art. 24, §§ 3º e 4º, da CF/88.
Embora a Lei federal nº 9.055/95 não seja impugnada nestas ações - somente na ADI nº 4.066 (a qual estou impedido de julgar por ter atuado nela como Advogado-Geral da União) -, a causa de pedir nas ações de controle concentrado é aberta e “o STF, no exercício da competência geral de fiscalizar a compatibilidade formal e material de qualquer ato normativo com a Constituição, pode declarar a inconstitucionalidade, incidentalmente, de normas tidas como fundamento da decisão” (Rcl 4374/PE, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe de 4/9/13).
Até  porque,  sob  os  fundamentos  aqui  apresentados,  a  análise da


 
constitucionalidade da lei federal – como chamou atenção o eminente Professor Ministro Eros Grau no julgamento da medida cautelar da ADI nº 3.937/SP - é questão prejudicial ao debate quanto à constitucionalidade das leis estaduais e municipal em questão, não sendo dado à Corte se furtar de se pronunciar sobre uma questão de inconstitucionalidade que surge incidenter tantum.
Lembro que já o fez a Corte na ADI 4.029, de relatoria do Ministro Luiz Fux: julgou improcedente a ação que questionava a constitucionalidade da Lei federal nº 11.516/07, que criou o Instituto  Chico Mendes, mas declarou incidentalmente a inconstitucionalidade de dispositivos da Resolução nº 1 de 2002 do Congresso Nacional (DJe de 27/6/12).
Passo então ao próximo ponto de meu voto.
 
III.   O ATUAL ESTÁGIO DO DEBATE PÚBLICO E CIENTÍFICO ACERCA DO AMIANTO CRISOTILA (ASBESTO BRANCO) E O PROCESSO DE INCONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ART. 2º DA LEI FEDERAL Nº 9.055/1995
 
Na doutrina constitucional, reconhece-se o fenômeno pelo qual uma lei antes reconhecida como constitucional vem a ser considerada incompatível com a Constituição após determinado período de vigência. Esse fenômeno pode ocorrer, basicamente, de duas formas: em razão de mudança no parâmetro de controle, decorrente de alteração formal do texto constitucional ou do sentido da norma constitucional (no último caso, tem-se a chamada mutação constitucional); e por força de alterações nas relações fáticas subjacentes à norma jurídica.
Sabe-se que a esfera dos fatos se comunica com a esfera do direito de diversas maneiras. Nesse sentido, a interpretação das normas jurídicas sempre é um processo de articulação entre texto e realidade fática. Do mesmo modo, a esfera dos fatos é determinante na compreensão que temos acerca da adequação de determinada norma aos princípios e regras constitucionais.


 
A jurisdição constitucional deve ser exercida com prudência e sensibilidade para esse importante aspecto da interpretação constitucional. É essa compreensão que embasa, por exemplo, o emprego da técnica do apelo ao legislador em virtude de mudança nas relações jurídicas ou fáticas, a respeito da qual leciona o eminente Ministro  Gilmar Mendes na seara doutrinária, a partir da análise da jurisprudência da Corte Constitucional Alemã. Dentre as decisões citadas pelo eminente Ministro, vale mencionar o caso da divisão dos distritos eleitorais, clássico exemplo de processo de inconstitucionalização na jurisprudência alemã, relatado nos seguintes termos:
 
“22. A decisão do Bundesverfassungsgericht de 22 de maio de 1963 revela exemplo clássico do processo de inconstitucionalização (Verfassungswidrigwerden) em virtude de uma mudança nas relações fáticas. Ressaltou-se, nesse acórdão, que, em virtude da significativa alteração na  estrutura demográfica das diferentes unidades federadas, a divisão dos distritos eleitorais, realizada em 1949 e preservada nas sucessivas leis eleitorais, não mais atendia às exigências demandadas do princípio de igualdade eleitoral (Lei Fundamental, art. 38). O Tribunal absteve-se, porém, de pronunciar a inconstitucionalidade sob a alegação de que tal situação não podia ser constatada na data da promulgação da  lei (setembro de 1961). O Bundesverfassungsgericht logrou infirmar, assim, a ofensa ao art. 38 da Lei Fundamental. Conclamou-se, porém, o legislador ‘a empreender as medidas necessárias à modificação dos distritos eleitorais, com a redução da discrepância existente para patamares toleráveis’.
23. Essa exortação do Tribunal foi atendida com a promulgação da Lei de 14 de fevereiro de 1964 (Gesetz zur Änderung des Bundeswahlgesetzes)” (O Apelo ao Legislador – Appellentscheidung – na Práxis da Corte Constitucional Alemã. Revista de informação legislativa : v. 29, n. 114, abr./jun. 1992).


 
O fenômeno do processo de inconstitucionalização não é estranho à práxis deste Supremo Tribunal Federal. Vale mencionar o RE nº 135.328, de Relatoria do Ministro Marco Aurélio, em que foi consignado que, enquanto a Defensoria Pública não fosse devidamente organizada, o art. 68 do Código de Processo Penal seria considerado ainda constitucional, permanecendo o Ministério Público ainda legitimado para a ação de ressarcimento nele prevista (Tribunal Pleno, DJ de 20/4/01).
Mais recentemente, no julgamento da Rcl 4374/PE, a respeito do benefício assistencial de prestação continuada ao idoso e ao deficiente, o Tribunal, por maioria, declarou a inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade, do art. 20, § 3º, da Lei 8.742/1993, em razão da “ocorrência do processo de inconstitucionalização decorrente de notórias mudanças fáticas (políticas, econômicas e sociais) e jurídicas (sucessivas modificações legislativas dos patamares econômicos utilizados como critérios de concessão de outros benefícios assistenciais por parte do Estado brasileiro)” (DJe 4/9/13).
Outrossim, conforme se observa a partir de Marcelo Borges de Mattos Medina, toda legislação é editada tendo-se em conta determinados prognósticos, que podem vir ou não a ser confirmados  após um considerável período de vigência da norma. Frustradas as expectativas em relação ao cumprimento desses prognósticos, e atestada sua inaptidão para colaborar com a concretização dos valores constitucionais, cabe reavaliar sua validade. Nas palavras do autor mencionado:
 
“Acontece que, às vezes, mesmo os melhores prognósticos legislativos, em face dos quais determinado estatuto, de início constitucional, tenha sido elaborado, acabam por ser infirmados em virtude da evolução da realidade. E, assim, tempos depois da edição da lei, cumprirá renovar a apreciação dos fatos da vida, a fim de se verificar a validade da medida no contexto social então presente. (…) justificar-se-á o reexame pela permanente necessidade de tornar ótima a efetividade das normas       da       Constituição,       afastando-se,       no      plano


infraconstitucional, quaisquer diplomas que obstem a plena realização desse grave desiderato”(Constituição e Realidade: a influência das transformações sociais na jurisdição constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. p. 47).
 
Tendo em vista tais pressupostos teóricos, entendo, no caso, que a Lei nº 9.055/1995 passou por um processo de inconstitucionalização, em razão da alteração no substrato fático do presente caso. Isso porque as percepções dos níveis de consenso e dissenso em torno da necessidade ou não do banimento do amianto não são mais os mesmos observados quando da edição da referida norma geral.
Se, antes, tinha-se notícia dos possíveis riscos à saúde e ao meio ambiente ocasionados pela utilização da crisotila, falando-se naquela época na possibilidade do uso controlado dessa substância, hoje, o que se observa é um consenso em torno da natureza altamente cancerígena do mineral e da inviabilidade de seu uso de forma efetivamente segura, sendo esse o entendimento oficial dos órgãos nacionais e internacionais que detêm autoridade no tema da saúde em geral e da saúde do trabalhador.
Cheguei a esta conclusão após a realização de audiência pública, em 24 de agosto de 2012, convocada pelo eminente Ministro Marco Aurélio, na qual foram ouvidos representantes de entidades governamentais, de órgãos internacionais e da sociedade civil acerca dos aspectos científicos da matéria-prima e de suas repercussões para o meio ambiente, a saúde pública e a economia.
Quando Advogado-Geral da União, proferi parecer no sentido da constitucionalidade da Lei federal nº 9.055/95 (ADI 4.066) e pela inconstitucionalidade formal da Lei nº 3.579, de 7 de junho de 2001, do Estado do Rio de Janeiro, que dispõe sobre a substituição progressiva da produção e da comercialização de produtos que contenham asbesto.
No entanto, a realização da referida audiência pública elevou o debate sobre a questão no Tribunal a outro patamar. Com efeito, a abordagem do tema sob diferentes perspectivas desvelou uma nova ordem de fatores a serem considerados no julgamento deste caso.  Dentre


 
 
eles, sobressai o fato de estarmos diante de um tema de natureza técnico- científica, cuja compreensão e tratamento jurídico-normativo  dependem do estágio do desenvolvimento científico em que  se encontre o observador.
Em revisãoCom relação a esse aspecto, rememoro que, ao proferir voto no RE, com repercussão geral, nº 627.189 (DJe de 3/4/17), assinalei que a caracterização do que é seguro ou não à saúde depende do avanço do conhecimento científico acerca da questão. No recurso, questionava-se acórdão que deixara de aplicar a norma nacional (Lei nº 11.934/2009) relativa aos limites de exposição humana ao campo eletromagnético das linhas de transmissão de energia elétrica, fixando, no caso concreto, patamar abaixo do previsto na lei nacional. Na ocasião, observei que não havia evidências científicas suficientes de que o patamar fixado na legislação nacional – que corresponde ao valor recomendado pela Organização Mundial de Saúde –  causasse efeitos adversos à saúde.
Adoto, aqui, a mesma premissa empregada no referido recurso extraordinário, para chegar, no entanto, a conclusão diversa.
No caso, deve-se considerar o avanço do conhecimento científico acerca dos efeitos do amianto à saúde e ao meio ambiente, havendo, quanto a esse aspecto, repita-se, consenso científico dos órgãos de proteção à saúde acerca da natureza altamente cancerígena do referido mineral, o qual aponta para a impossibilidade de seu uso seguro.
Conforme assinalou o representante do Ministério da Saúde na audiência pública, todas as modalidades do amianto são classificadas pela Agência Internacional para a Pesquisa sobre o Câncer (IARC), da Organização Mundial da Saúde (OMS), como comprovadamente carcinogênicas para os seres humanos (fl. 9 das transcrições da audiência pública). Também ressaltou-se que, de acordo com a OMS, não há possibilidade de uso seguro da fibra, pois não há níveis de utilização nos quais o risco de câncer esteja ausente, e a única forma eficaz para eliminar as doenças relacionadas com essas fibras minerais é o abandono da utilização de todas as espécies de amianto.
Segundo  o  estudo  Eliminação  das  enfermidades  relacionadas  com    o


 
amianto, produzido pela OMS, o amianto é um dos cancerígenos ocupacionais mais importantes, causando aproximadamente metade das mortes por câncer ocupacional no mundo (Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/69481/1/WHO_SDE_OEH_06.03
_spa.pdf.)
Em revisãoNo Brasil, de acordo com os dados trazidos pelo Ministério da Saúde, o amianto é responsável por 1/3 (um terço) dos casos de cânceres ocupacionais e 80% das pessoas morrem em um ano após do  diagnóstico (fl. 11). O órgão também registra a ascensão do número de cânceres relacionados ao amianto em suas bases de dados, desenhando- se, a partir disso, grave problema de saúde pública (fl. 15).
Ressalta-se que, em outubro de 2014, foi publicada a Portaria Interministerial nº 09, dos Ministérios da Previdência Social, do Trabalho e Emprego e da Saúde, que contém, em anexo, a Lista Nacional de Agentes Cancerígenos para Humanos (LINACH). O rol foi dividido em três grupos: Grupo 1, de substâncias cuja natureza carcinogênica para humanos está confirmada; Grupo 2, daquelas provavelmente carcinogênicos para humanos; e Grupo 3, aquelas possivelmente carcinogênicos para humanos. O amianto, em todas as suas formas, inclusive a crisotila, figura no Grupo 1 (substâncias cuja natureza carcinogênica para humanos está confirmada).
O alto risco cancerígeno do amianto está refletido na própria legislação previdenciária brasileira. O representante do Ministério da Previdência Social, na audiência pública, observou que o tempo de aposentadoria especial no caso de exposição aos asbestos é de 20 (vinte) anos (item 1.02 do Anexo IV do Decreto nº 3048/1999), sendo que, para todos os demais itens da lista de agentes químicos nocivos (item 1.0.0),  o período é de 25 (vinte e cinco) anos. O decreto prevê período idêntico somente em uma hipótese, de exposição a agentes físicos, químicos e biológicos associados, em “mineração subterrânea cujas atividades sejam exercidas afastadas das frentes de produção” (4.0.1).
O representante do MPS também assinalou que assim está posto na legislação pelo fato de que o trabalhador exposto ao amianto, de fato,  se


 
 
aposenta mais cedo, como consequência da sua situação de morbidade acelerada, além do alto percentual de requerimento de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez em razão de moléstias relacionadas ao amianto. Essa situação de morbidade acelerada e de alto grau de incapacidade onera sobremaneira o sistema previdenciário.
Do ponto de vista da possibilidade de dano ambiental, a representante do Ministério do Meio Ambiente concluiu sua fala na audiência pública assinalando a convicção acerca da necessidade de se promover a substituição do amianto por materiais alternativos, tendo em vista a necessidade de se reduzir o risco de exposição ao mineral.
Chamou a atenção, ademais, para o fato de que as características do amianto e a forma como ele se comporta na natureza, que fazem com que exista uma grande rede de exposição à fibra, elevam o risco de contaminação, conforme se observa no seguinte trecho da explanação:
 
“Destaca-se que a possibilidade de uso do amianto caracteriza um uso dispersivo, ou seja, ele tem um destino, ele tem uma possibilidade de uma utilização bastante ampla que faz com que ele se espalhe. O produto do amianto chega a diversos ambientes, locais, usuários. A maioria dos profissionais e usuários que entram em contato com esses produtos, muitas vezes, nem sabe da existência do amianto nesse produto, o que faz com que eles tenham uma certa despreocupação em lidar com ele.
(…)
Como o amianto se comporta no meio ambiente? Todos os tipos de amianto têm, praticamente, o mesmo comportamento, independente de qual forma de fibra. Todos eles têm uma fácil mobilidade por escoamento, ou seja, ele não penetra no solo, eles ficam na superfície, eles se dispersam por erosão, por dispersão de fibra, não possui, como lixiviar - como nós falamos
- uma penetração no solo; o movimento das fibras só ocorre por escoamento.
Quando ele se deposita no ambiente aquático, na superfície, também não há estudos muito claros sobre como eles


 
se dispersam daquele ambiente. Ele não é biodegradável, ou seja, não existe nenhum micro-organismo que tenha condição de quebrar, de destruir, de transformar essa fibra de alguma forma.
Em revisãoÉ importante nós colocarmos que, quando nós temos produtos químicos utilizados no meio ambiente, geralmente, observamos a capacidade de algum micro-organismo transformá-lo em alguma outra molécula mais simples que possa ser, de certa forma, diminuída sua toxicidade. No caso do amianto, nós não temos essa situação. Então, ele não é degradado por mecanismos aquáticos e ele permanece na mesma forma como é colocado.
Do ponto de vista, ainda continuando, do comportamento ambiental dele, ele não possui nenhuma afinidade por matéria orgânica ou inorgânica, ou seja, no momento que se coloca, não existe nenhuma possibilidade de esse material ser incorporado a alguma estrutura orgânica e faça com que ele permaneça mais imóvel, que ele permaneça - vamos dizer assim - isolado da questão ambiental. Ele permanece como ele mesmo por todo o tempo. Então, nós dizemos que ele não absorve as partículas do solo, ele não se absorve a nenhum outro componente do solo, ele não tem essa afinidade. Alguns têm algumas afinidades com "metais traços", compostos orgânicos. É bastante difícil encontrar isso, mas, de forma geral, o comportamento dele é dessa forma.
Ele não bioconcentra. Bioconcentra é quando você tem um produto químico ou um composto, onde ele tem a possibilidade de se incorporar e vai se aumentando a concentração. E também você biomagnifica, passa para outras gerações. No caso do amianto, não. Ele se deposita, ele é absorvido e ele permanece no próprio ambiente. Um exemplo que nós temos claro, os agrotóxicos, que já foram proibidos; DDT, por exemplo, vai passando pela cadeia. No caso do amianto, não acontece, mas ele tem a capacidade de ser absorvido pelo organismo, na  forma como foi colocado pelo Ministério da Saúde.
(…)


 
Em revisãoDevido a esse comportamento ambiental do amianto e também o uso dele, nós temos o que chamamos de rede de exposição. Essa rede de exposição inclui fibras na extração do minério, fibras na roupa de trabalho, comunidades de entorno de minas, fibra dos laminadores nas fábricas; nós temos refugos de laminação de fábrica, transporte de fibra - quando você faz o transporte da própria fibra já produzida -, trabalhadores que instalam, reparam, removem materiais com amianto, contato com produtos desgastados ou quebrados e, de certa forma, obviamente, o próprio descarte do resíduo” (fls. 23/29).
 
Ainda sob esse aspecto, segundo a representante da Secretaria de Meio Ambiente do Estado de São Paulo, só naquele Estado são gerados
50.0              (cinquenta mil) toneladas de resíduos de amianto por ano, havendo poucos aterros aptos a tratar esses resíduos, em razão dos custos elevados para sua implementação e operação, o que expõe a população em geral a riscos.
Nesse ponto, é importante destacar que o Brasil está entre os cinco maiores produtores mundiais de amianto, que é utilizado em sua esmagadora maioria na indústria de cimento-amianto ou fibrocimento (telhas, caixas d'água etc). A única mina de extração de amianto crisotila ainda em operação no Brasil é a mina de Cana Brava, localizada no município de Minaçu, em Goiás.
Ressalte-se que a Lei nº 9.055 foi editada, em 1995, com base em um prognóstico de viabilidade do uso seguro da crisotila e na impossibilidade, na época, de se substituir a variedade crisotila por material alternativo.
No entanto, além de ter-se verificado, com o passar o tempo, que não há, do ponto de vista técnico, formas de uso seguro da crisotila, a prática tem demonstrado uma grande resistência das empresas em observarem as regras de proteção estabelecidas pela legislação.
A questão se reflete na casuística judicial brasileira. Por exemplo, em março de 2017, a empresa que é considerada a maior fabricante   nacional


 
Em revisãode telhas, caixas d’águas, dentre outros produtos compostos de fibrocimento, foi condenada, em primeira instância, pela Justiça do Trabalho do Rio de Janeiro a substituir o amianto por matérias-primas alternativas na fabricação de seus produtos, no prazo de 18 meses. A condenação se deu nos autos de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho, a partir de inquérito civil instaurado em 2008, em que se atestou que a empresa desobedecia sistematicamente as normas de segurança aplicáveis (fonte: http://istoe.com.br/eternit-justica- do-trabalho-determina-substituicao-do-amianto-em-fabrica-no-rio/).
O descaso parece não ser exclusividade das empresas brasileiras. De fato, o representante da Organização Internacional do Trabalho na audiência pública assinalou a impossibilidade do controle da exposição à crisotila nas diversas fases de seu ciclo. Destacou, nesse sentido, que “[a]s medidas de higiene restringem-se tão somente ao ambiente de trabalho de grandes empresas, responsáveis por uma parcela ínfima da população exposta ao amianto” (fl. 305 das transcrições).
A essa ordem de fatores soma-se o fato de que a Convenção nº 162 da Organização Internacional do Trabalho, de junho de 1986 – internalizada pelo Brasil mediante o Decreto nº 126, de 22 de maio de 1991, prevê, dentre seus princípios gerais, a necessidade de revisão da legislação nacional sempre que o desenvolvimento técnico e o progresso no conhecimento científico o requeiram. É exatamente isso que dispõe o parágrafo 2 do art. 3º da Convenção:
 
ARTIGO 3º
“1 - A legislação nacional deve prescrever as medidas a serem tomadas para prevenir e controlar os riscos, para a saúde, oriundos da exposição profissional ao amianto, bem como para proteger os trabalhadores contra tais riscos.
2 – A legislação nacional, adotada em virtude da aplicação do parágrafo 1 do presente Artigo, deverá ser submetida a revisão periódica, à luz do desenvolvimento técnico e do aumento do conhecimento científico”.


 
Nessa esteira, o § 2 do art. 15 determina a revisão e a atualização dos limites de exposição ou de outros critérios de exposição ao amianto, à luz do desenvolvimento tecnológico e do aumento do desenvolvimento técnico e científico, in verbis:
 
ARTIGO 15
“1 - A autoridade competente deverá fixar os limites da exposição dos trabalhadores ao amianto ou de outros tipos de critérios de avaliação do local de trabalho em termos de exposição ao amianto.
2 - Os limites de exposição ou outros critérios de exposição deverão ser fixados, revistos e atualizados periodicamente, à luz do desenvolvimento tecnológico e do aumento do conhecimento técnico e científico.”
 
Dentro desta mesma lógica, o art. 10 da convenção determina a substituição do amianto por material menos danoso ou mesmo seu efetivo banimento, sempre que isso se revelar necessário e for tecnicamente viável. É o que dispõe o art. 10 da convenção:
 
ARTIGO 10
“Quando necessárias para proteger a saúde dos trabalhadores, e viáveis do ponto de vista técnico, as seguintes medidas deverão ser previstas pela legislação nacional:
a)   sempre que possível, a substituição do amianto ou de certos tipos de amianto ou de certos produtos que contenham amianto por outros materiais ou produtos, ou, então, o uso de tecnologias alternativas desde que submetidas à avaliação científica pela autoridade competente e definidas como inofensivas ou menos perigosas.
b)   a proibição total ou parcial do uso do amianto ou de certos tipos de amianto ou de certos produtos que contenham amianto para certos tipos de trabalho”.
 
Sendo  assim,  observa-se  que  o  Brasil  assumiu  o    compromisso


internacional    de    revisar   sua    legislação    e    de    substituir,    quando tecnicamente viável, a utilização do amianto crisotila.
Em revisãoNota-se, então, que, embora se reconheça que a Convenção nº 162,  de 4 de junho de 1986, da Organização Internacional do Trabalho, de fato, não vede a utilização do amianto na modalidade crisotila, seu texto traduz um grande compromisso internacional não com a manutenção  do emprego da fibra de forma controlada – como querem sugerir os que negam o banimento –, e sim com a saúde dos trabalhadores, havendo vários preceitos que determinam a alteração da legislação nacional sobre a matéria com o fito de torná-la a mais protetiva possível, considerando o estágio do desenvolvimento científico sobre o tema.
Destaca-se que, na esteira da Convenção nº 162 da OIT, a Comissão das Comunidades Europeias, em 1999, proibiu o uso remanescente do amianto crisotila, passando a vigorar a proibição a partir de janeiro de 2005 (Anexo I à Diretriz 769/69 EEC).
Na atualidade, mais de 66 (sessenta e seis) países já baniram o uso de qualquer espécie de amianto. Assim o fez Austrália, Reino Unido e Japão, entre outros. Na América do Sul, além da Argentina, o Chile e o Uruguai também proibiram totalmente o uso e a comercialização de todas as formas de amianto em seus territórios.
Nessa esteira, na 95ª Sessão da Conferência Internacional, ocorrida em 2006, a Organização Internacional do Trabalho estipulou que a eliminação do uso de todas as formas de amianto e a identificação dos procedimentos adequados para sua eliminação constituem os meios mais eficazes para proteger os trabalhadores e evitar o surgimento de doenças.
Na ocasião, também se afirmou que a Convenção OIT nº 162/1986 não pode ser utilizada como argumento em favor da continuidade da utilização do amianto, conforme também salientou a representante da Organização Internacional do Trabalho na audiência pública (fl. 301 das transcrições).
Esse pano de fundo normativo internacional também conta com a Convenção sobre o Câncer Ocupacional nº 139, da OIT, de 1974, ratificada


pelo Brasil, que obriga os países signatários a procurar, por todos os meios, substituir as substâncias e agentes cancerígenos a que estejam expostos os trabalhadores por substâncias ou agentes não cancerígenos ou por substâncias menos nocivas.
Ressalte-se que a Lei federal nº 9.055/95, em seu art. 3º, manteve a vigência das atuais normas relativas ao asbesto/amianto da variedade crisotila contidas “nos acordos internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil”, o que inclui o compromisso assumido com a ratificação da Convenção 162 da OIT de abolir o uso do amianto tão logo seja possível sua substituição por outro material menos nocivo.
Quando da edição da Lei federal, o país não dispunha de produto qualificado para substituir o amianto crisotila. No entanto, hoje já existem materiais alternativos.
Além de ser importado desde 2003, o PVA, por exemplo, passou a ser produzido no Brasil a partir de matéria-prima nacional, o fio de polipropileno, possibilitando a substituição da crisotila.
Ressalte-se que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e o Ministério da Saúde já recomendaram a substituição do amianto pelas fibras de poliálcool vinílico (PVA) ou de polipropileno (PP), conforme Nota Técnica elaborada por Grupo de Trabalho dessa autarquia federal (fl. 1068), in verbis:
 
“A fibra de amianto vem sendo substituída  gradativamente na indústria brasileira. No setor de fibrocimento a opção tem sido a utilização de fibras de poliálcool vinílico (PVA) e polipropileno (PP), juntamente com fibras de celulose.
As fibras de PVA e PP estão sendo utilizadas em diversas partes do mundo e encontram-se, no atual estado de conhecimento, classificadas como grupo 3 (não é classificável como sendo carcinogênico para humanos) pela Agência Internacional para Pesquisa do Câncer (IARC – International Agency for Research on Câncer vinculada a Organização Mundial da Saúde). Estas fibras têm sido utilizadas há décadas


 
em outras aplicações, como na indústria têxtil. As fibras de  PVA particularmente têm sido utilizadas em diversos países da Europa na produção de fibrocimento há mais de 15 anos.
(...)
Após a avaliação das fibras de PVA e PP, o Ministério da Saúde, atendendo o art. 6º do DECRETO Nº 2.350, de 15 de outubro de 1997 que regulamenta a LEI Nº 9.055, de 1º de junho de 1995, conclui:
pela recomendação da utilização das fibras da PVA e PP, nas dimensões aqui descritas, na produção de fibrocimento” (grifos nossos).
 
A Dra. Simone Alves do Santos, que, na audiência pública, representou a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, chamou a atenção para o fato de que, das 19 (dezenove) indústrias que usavam o amianto em seus processos produtivos em 2008, 17 (dezessete) o substituíram por outras substâncias na fabricação de seus produtos (as duas indústrias que não fizeram a substituição obtiveram liminar na Justiça).
Assim, com o advento dos materiais substitutos, hoje já recomendados pelo Ministério da Saúde e pela ANVISA, e em atendimento aos compromissos internacionais de revisão periódica da legislação, a Lei federal nº 9.055, de 1995 – que, desde então, não sofreu nenhuma atualização -, deveria ter sido revista para banir progressivamente a utilização do asbesto na variedade crisotila, ajustando-se ao estágio atual do consenso em torno dos riscos envolvidos na utilização desse mineral.
Enfim, se em 1995, tolerava-se, sob certas circunstâncias e condições, a utilização da crisotila, especialmente em razão da inexistência naquele momento de substitutivos, atualmente, o consenso científico é no sentido da impossibilidade técnica do uso seguro da crisotila e da existência de substitutivo idôneo.
Esse conjunto de fatores - quais sejam, (i) o consenso dos órgãos oficiais de saúde geral e de saúde do trabalhador em torno da natureza


 
altamente cancerígena do amianto crisotila; (ii) a existência de materiais alternativos à fibra de amianto e (iii) a ausência de revisão da legislação federal, que já tem mais de 22 (vinte e dois anos) anos - revela a inconstitucionalidade superveniente (sob a óptica material) da Lei Federal nº 9.055/1995, por ofensa, sobretudo, ao direito à saúde (art. 6º e 196, CF/88); ao dever estatal de redução dos riscos inerentes ao trabalho por meio de normas de saúde, higiene e segurança (art. 7º, inciso XXII, CF/88); e à proteção do meio ambiente (art. 225, CF/88).
 
III – CONCLUSÃO
 
Diante da invalidade da norma geral federal, os estados-membros passam a ter competência legislativa plena sobre a matéria, nos termos do art. 24, § 3º, da CF/88, até que sobrevenha eventual nova legislação federal acerca do tema.
 
Eis o que dispõem, em resumo, as leis questionadas:
-   ADI nº 3.357/RS - Lei nº 11.643/2001 do Estado do Rio Grande do Sul – proíbe a produção e a comercialização de produtos à base de amianto no âmbito daquele Estado-membro.
-   ADI nº 3.356/PE - Lei nº 12.589/2004 do Estado de Pernambuco – proíbe a fabricação, o comércio e o uso de materiais, elementos construtivos e equipamentos constituídos por amianto ou asbesto em qualquer atividade no âmbito do estado, especialmente na construção civil, pública ou privada.
-   ADI nº 3.937 - Lei nº 12.684/2007 do Estado de São Paulo – proíbe o uso, no âmbito daquele Estado, de produtos, materiais ou artefatos que contenham quaisquer tipos de amianto ou asbesto.
 
Como as referidas leis estaduais proíbem a utilização do amianto crisotila nas atividades que mencionam, em consonância com os preceitos constitucionais (em especial, os arts. 6º, art. 7º, inciso XXII, 196 e 225, CF/88)  e  com  os  compromissos  internacionais  subscritos  pelo   Estado


 

brasileiro,     entendo     que    não    incidem    elas    no    mesmo     vício    de inconstitucionalidade material da legislação federal.

 

No caso da ADPF 109, o ponto central é que a Lei municipal nº 13.113/2001 proíbe a utilização de amianto em construções civis no âmbito do Município de São Paulo.

Assim, diante i) da convergência entre a lei municipal e a legislação estadual – na época, a Lei nº 10.813/2001 e, atualmente, a Lei nº 12.684/2007 -, uma vez que ambas proíbem a utilização de quaisquer tipos de amianto; e ii) da competência dos municípios contida no art. 30,  incisos I, II e VIII, da Constituição Federal para tratar de interesse local, são constitucionais a Lei municipal nº 13.113/2001 e o Decreto nº 41.788, de 13 de março de 2002, que a regulamenta.

 

Pelo exposto, declaro, incidentalmente, a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei Federal nº 9.055/1995 e julgo, por isso, improcedentes as ADI nºs 3.356, nº 3.357 e nº 3.937 e a ADPF nº 109, de modo a se declarar a constitucionalidade formal e material das leis questionadas.

É como voto.