PODER JUDICIÁRIO
JUSTIÇA DO TRABALHO
TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 15ª
REGIÃO
Vara do Trabalho de Leme/SP
Processo nº 180600-48.2009.5.15.0134
RTOrd
Litigantes: INFIBRA S.A., requerente,
SAMA S.A.
MINERAÇÕES ASSOCIADAS, assistente
litisconsorcial, e MUNICÍPIO DE
LEME, requerido.
Submetido o processo a julgamento, foi
proferida a seguinte
SENTENÇA:
Pedidos às fls. 21/23.
Deferida liminar às fls. 474/480 para
que a requerente pudesse continuar produzindo, até o julgamento do feito,
artefatos contendo amianto crisotila.
Inclusão de assistente litisconsorcial
no pólo ativo às fl. 502.
Apresentada defesa às fls. 747 e
seguintes, com manifestação sobre documentos às fls. 759/760.
Em audiência, dada a desnecessidade de
produção de provas, foi encerrada a instrução processual, fl. 744.
Impugnação à contestação às fls.
762/771, pela requerente, e às fls. 772/783, pela assistente.
Manifestação do Ministério Público do
Trabalho às fls. 787/808.
Inconciliados.
É o relatório.
D E C I D O:
PRELIMINARMENTE:
DA COMPETÊNCIA MATERIAL:
O requerido pugna pelo reconhecimento
da incompetência absoluta do Juízo, uma vez que a ação visa a anular auto de
infração lavrado pela vigilância sanitária do Município de Leme, no exercício
de suas atribuições de proteção à saúde. Dessa feita, entende que o órgão
competente para apreciar a ação anulatória seria o Juízo Cível.
Razão não lhe assiste. A EC 45/2004
acresceu ao art. 114 da Constituição Federal o inciso VII, conferindo a esta
Especializada a competência para julgar ações relativas às penalidades
administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização do
trabalho.
Na hipótese, a penalidade de interdição
foi aplicada pela vigilância sanitária com o escopo de proteger a saúde de todos
os munícipes, mas especialmente os trabalhadores da autora, tendo havido,
inclusive, participação do Ministério do Trabalho e do Ministério Público do
Trabalho na liberação parcial e temporária das atividades, conforme documento
de fl. 26. Ademais, a requerente questiona a legitimidade do órgão
municipal para a fiscalização do
ambiente de trabalho, em face do art. 21, XXIV da CF e da atribuição conferida
pelo art. 161 da CLT ao superintendente regional do trabalho, restando evidente
a competência deste juízo para dirimir a controvérsia.
DO MÉRITO:
A vigilância sanitária do Município de
Leme, através do auto de imposição de penalidade nº 267, série AD (fl. 25),
interditou parcialmente o estabelecimento da requerente, a fim de suspender o
processo de fabricação de produtos que contenham amianto, com fulcro na Lei
Estadual 12.864/2007. A autora alega a nulidade da penalidade administrativa
imposta, tendo em vista que órgão municipal teria invadido competência do
Ministério do Trabalho e Emprego.
O requerido impugna tal assertiva, sob
a alegação de que a vigilância sanitária se inclui no campo de atuação do
Sistema Único de Saúde, que detém poder de polícia sobre a fabricação de
produtos nocivos à saúde.
Pois bem. A Constituição Federal de
1988 arrolou como direito dos trabalhadores a "redução dos riscos inerentes ao
trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança" (art. 7º, XXII), enfatizando, em outros
dispositivos que se harmonizam organicamente, a seguridade social como um
"conjunto integrado de ações de
iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos
relativos à saúde..." (art. 194, caput),
estabelecendo a saúde como "direito
de todos e dever do Estado, garantido mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de
outros agravos..." (art. 196) e qualificando como
de "relevância pública as ações e serviços
de saúde..." (art. 197).
Nesse sentido, a Carta Magna atribuiu
ao Sistema Único de Saúde a competência para "
executar as ações de vigilância
sanitária e epidemiológica , bem como as de saúde do trabalhador" (art. 200, II) e “colaborar na proteção do meio ambiente,
nele compreendido o do trabalho” (art.
200, VIII).
Data maxima venia ao juiz prolator da decisão em sede de liminar, entendo
que a vigilância sanitária municipal tem, sim, competência para fiscalizar o ambiente
de trabalho e as atividades que impliquem danos à saúde do trabalhador, porque
sua atuação é respaldada, como visto, em nível constitucional (art. 200). Ao estabelecer
a competência exclusiva da União para organizar, manter e executar a inspeção
do trabalho, o art. 21, XXIV da CF não excluiu a competência comum de Estados e
Municípios no cuidado à saúde (art. 23, II) e na proteção ao meio ambiente (art.
23, VI).
Com efeito, a competência exclusiva
quanto à inspeção do trabalho é materializada na atuação do Ministério do
Trabalho e Emprego e de seus órgãos regionais, aos quais incumbem as ações
administrativas para assegurar a observância das leis trabalhistas. Nesse
sentido, o Município jamais poderia, p.
ex., fiscalizar a regularidade de
terceirização de mão de obra ou aplicar penalidade administrativa pela não
anotação de CTPS.
Por outro lado, sendo a saúde dever do
Estado, a ser zelado por todos os entes federativos, não pode prevalecer
interpretação que restrinja a atuação do Município, na defesa desses
interesses, a determinado setor da sociedade. Seria flagrantemente
inconstitucional asseverar que o Município deve zelar pela qualidade de todo o
meio ambiente, exceto o do trabalho, ou proteger a saúde de todos os cidadãos,
exceto os trabalhadores. Em verdade, a fiscalização das condições sanitárias do
ambiente de trabalho, expressamente prevista no art. 200 da CF como atribuição do
Sistema Único de Saúde, reforça a atuação do Ministério do Trabalho e Emprego, de
modo a formar um sistema de ampla proteção à saúde do trabalhador.
Na linha traçada pelo constituinte, a
Lei Federal nº 8.080/1990, regulamentando a atuação do Sistema Único de Saúde,
assim dispõe:
“Art. 6º Estão incluídas ainda no campo
de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS):
I - a execução de ações:
a) de vigilância sanitária;
(…)
c) de saúde do trabalhador ;
(…)
§ 1º Entende-se por vigilância
sanitária um conjunto de ações capaz de eliminar, diminuir ou prevenir riscos à
saúde e de intervir nos problemas sanitários decorrentes do meio ambiente, da
produção e circulação de bens e da prestação de serviços de interesse da saúde
(…).
(...)
§ 3º Entende-se por saúde do trabalhador,
para fins desta lei, um conjunto de atividades que se destina, através das
ações de vigilância epidemiológica e vigilância sanitária, à promoção e
proteção da saúde dos trabalhadores, assim como visa à recuperação e
reabilitação da saúde dos trabalhadores submetidos aos riscos e agravos
advindos das condições de trabalho”.
A vigilância sanitária, portanto,
comporta ações para eliminar os riscos à saúde decorrentes da produção e
circulação de bens, exatamente a hipótese sob exame.
Especificamente no que tange à
competência da vigilância sanitária municipal, dispõe o Código Sanitário do
Estado de São Paulo (Lei Estadual 10.083/1998), no exercício da competência
concorrente para legislar sobre defesa da saúde (art. 24, XII, CF):
“Artigo 92 - Os profissionais das
equipes de Vigilância Sanitária e Epidemiológica, investidos das suas funções
fiscalizadoras, serão competentes para fazer cumprir as leis e regulamentos
sanitários, expedindo termos, autos de infração e de imposição de penalidades,
referentes à prevenção e controle de tudo quanto possa comprometer a saúde.
(…)
Artigo 112º - As infrações sanitárias,
sem prejuízo das sanções de natureza civil ou penal cabíveis, serão punidas,
alternativa ou cumulativamente, com penalidades de:
(…)
VIII - suspensão de fabricação de
produto;
IX - interdição parcial ou total do
estabelecimento, seções, dependências e veículos;”
Dessa feita, conclui-se que a
vigilância sanitária do Município de Leme agiu com amparo na lei, sendo-lhe
permitida a interdição do estabelecimento, não prosperando a alegação da autora
no sentido de que tal penalidade somente poderia ser aplicada pelo Ministério
do Trabalho.
Remanesce a questão, todavia, quanto ao
fundamento utilizado para a autuação. Conforme se observa do auto de fl. 25, o
órgão municipal interditou o estabelecimento da autora por descumprimento da
Lei Estadual nº 12.684/2007, que proibiu o uso de quaisquer tipos de amianto no
Estado de São Paulo, inclusive o asbesto branco (crisotila), utilizado pela
requerente na fabricação de fibrocimento.
Ocorre que a Lei Federal nº 9.055/1995
vedou, em todo o território nacional, a extração, produção, industrialização,
utilização e comercialização de vários tipos de amianto,
exceto o crisotila, como expressamente consignado em seu art. 2º. Daí
porque a autora afirma a inconstitucionalidade da lei estadual que fundamentou
a autuação, por invadir a competência legislativa da União para editar normas
gerais na matéria.
Tal controvérsia é atualmente objeto de
uma ação direta de inconstitucionalidade (nº 3937), ainda não julgada em
caráter definitivo. O Supremo Tribunal Federal, todavia, apreciou medida
cautelar que visava à suspensão dos
efeitos da lei estadual, e, por maioria, negou
referendo à liminar concedida pelo relator, de modo a preservar a eficácia da
lei regional. Viável, portanto, o controle difuso de constitucionalidade.
Pois bem. A proibição do uso de amianto
na fabricação de produtos, embora motivada por razões sanitárias, implica
restrições à atividade comercial, o que é competência privativa da União, nos
termos do art. 22, VIII da CF.
Nesse sentido, o Estado detém
competência supletiva, exercitável somente quando inexistir lei federal
regulando a matéria.
De início, portanto, poder-se-ia
concluir pela inconstitucionalidade da Lei nº 12.684/2007. Contudo, uma análise
sistemática do ordenamento revela, em verdade, que é a Lei Federal nº
9.055/1995 que padece de inconstitucionalidade, e, por consequência, sua
inaplicabilidade torna legítimo o exercício da competência supletiva pelo
legislador estadual.
Vejamos. O art. 196 da Constituição
Federal, ao mesmo tempo em que erige a saúde como um direito de todos, a impõe
como dever do Estado, de forma que o legislador deve pautar sua atuação pela
proteção a este direito.
No caso específico do amianto, os
estudos médicos sugerem que não há níveis seguros para sua utilização, não
obstante o parâmetro colocado no Anexo 12 da NR-15 do Ministério do Trabalho.
Peço vênia para transcrever o voto do eminente Ministro Joaquim Barbosa,
proferido no julgamento da medida cautelar na ADI nº 3937/SP, e apoiado na tese
de René Mendes, da Universidade Federal de Minas Gerais:
“Há três doenças relacionadas ao uso do amianto: asbestose (causada pela reação do tecido à deposição de poeira no interior do pulmão), câncer de pulmão, e mesotelioma (tumores formados do tecido serodo que reveste órgãos como pulmão, coração e abdômen). Outras também têm sido associadas à exposição ao amianto (câncer de laringe, câncer de orofaringe, câncer de estômago, câncer de colo-retal e câncer de rim) (Mendes, p. 9-10).
A relação entre essas doenças e o
amianto já foi detectada pela literatura médica brasileira. No caso da
asbestose, esses efeitos teriam sido registrados há pelo menos 50 anos. No caso
do mesotelioma, é possível notar um crescimento dos casos. Sobre câncer do
pulmão, há evidência de que o risco de desenvolvimento do câncer seria baixo
nos primeiros 10 anos a partir da exposição ao amianto e alcançaria o seu nível
máximo a partir de 30 anos após o contato com omaterial (Mendes, p. 10-13).
De fato, não parecem existir níveis
seguros para a utilização do amianto, inclusive o crisotila. Mendes considera
superada, portanto, a chamada “hipótese do anfibólio”, ou seja, a conclusão de
que apenas o amianto do tipo anfibólio (azul, marrom e outros), espécie do
mineral que já está proibida no Brasil, teria consequências danosas à saúde humana.
As fibras do crisotila tem potencial para produzir mesotelioma (Mendes, p.
13-16).
(…)
Em 2004, o Conselho Nacional do Meio
Ambiente (Conama),reconheceu que, de acordo com os critérios adotados pela
Organização Mundial da Saúde, não há limites seguros para a exposição humana.
Naquele ato, também reconheceu que telhas e caixas d'água feitos de crisotila
são resíduos perigosos.”
Não prospera, portanto, a alegação de
que o asbesto branco ou crisotila seria uma variedade segura de amianto. Tanto
é verdade que muitos países, em destaque os pertencentes à União Europeia,
baniram a utilização de qualquer tipo de amianto, devido aos perigos manifestos
à saúde da população e, especialmente, dos envolvidos nos setores produtivos.
Nesse contexto, a Convenção nº 162 da
Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil e internalizada
através do Decreto nº 126/1991, previu a substituição gradativa do amianto por
substâncias menos nocivas à saúde.
Vale dizer, o Brasil se comprometeu a
adequar sua legislação para, sempre que possível,
substituir o uso do amianto pelo emprego de tecnologias alternativas. E, de
acordo com estudo de Cláudio Viveiros
de Carvalho, consultor legislativo da Câmara dos Deputados, existem materiais
substitutivos ao amianto no mercado brasileiro que atendem tanto às
especificações tecnológicas quanto às de proteção da saúde humana, tais como
aramidas, PVA e fibra de celulose (http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/1245/amianto_viveiros.pdf).
Frise-se que a convenção ratificada pelo
Brasil tem status infraconstitucional, porém supralegal, de modo que
a lei federal deveria ter sido editada em consonância com o compromisso
assumido de eliminar gradativamente a utilização do amianto, já que existentes
tecnologias alternativas. Nesse sentido, não vislumbro a alegada
inconstitucionalidade da Lei Estadual nº 12.684/2007; pelo contrário, a lei
local atende melhor ao preceito constitucional de proteção à saúde, de modo que
acompanho o entendimento preliminar manifestado pelo STF na matéria.
Ante o exposto, julgo improcedente o
pedido de anulação do auto de imposição de penalidade, bem como revogo a liminar concedida às fls. 479/480, para o fim de restabelecer a penalidade
administrativa de interdição imposta pela vigilância sanitária municipal.
PELO EXPOSTO, DECIDO rejeitar a preliminar de incompetência do Juízo e,
no mérito, julgar IMPROCEDENTE a ação anulatória movida por INFIBRA S.A. e SAMA S.A. MINERAÇÕES
ASSOCIADAS, esta na condição de assistente litisconsorcial,
em face do MUNICÍPIO DE LEME, revogando a liminar concedida às fls. 479/480, para o fim de
restabelecer a penalidade administrativa de interdição imposta pela vigilância
sanitária municipal.
Custas pela requerente, calculadas
sobre o valor da causa, no importe de R$200,00.
Intimem-se as partes e o Ministério
Público do Trabalho.
Leme, 22 de agosto de 2011.
LUCIANA MORO LOUREIRO
Juíza Federal do Trabalho